quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Estudo introdutório acerca do fetichismo / Introductory study about the fetishism

 obs.: Este artigo não trata especificamente de Sade, mas aborda uma tematica que é recorrente em suas obras: a perversão. O endereço da revista eletrônica encontra-se abaixo caso alguem tenha interesse neste tipo de discurssão.


http://www.contextosclinicos.unisinos.br/pdf/66.pdf

Maria Clarilene Medeiros Salvador Roberto

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

IDÉIAS LIBERTINAS PARA TEMPOS DE CLAUSTRO: A RECEPÇÃO BIOGRÁFICA DO MARQUÊS DE SADE NOS CIRCUITOS ACADÊMICOS BRASILEIROS

OBS.: Trabalho apresentado em um Coloquio Nacional na UFCG



Maria Clarilene Medeiros Salvador Roberto



Descendente de uma das mais antigas linhagens da nobreza francesa, Donatien Alphonse François de Sade - o Marquês de Sade - graças ao teor polêmico e iconoclasta da sua vasta produção literária, entrou para o rol das controversas personalidades históricas como ateísta, cético, contestador e niilista. O presente trabalho tem como objetivo discutir a recepção e a apropriação da biografia de Sade nos circuitos acadêmicos brasileiros, entre o fim da década de 60 e começo dos anos 80 do século XX.

As obras do Marquês foram proibidas ou malditas por mais de cem anos. Ainda que tenha vivido num período revolucionário (a Revolução Francesa), Sade foi perseguido, proibido e encarcerado durante a maior parte de sua vida, por todos os regimes sob os quais viveu. Apenas no século XX, as obras do Marquês começaram a ser resgatadas, principalmente a partir da paixão dos artistas surrealistas pelo escritor. Mas, mesmo assim, publicar Sade era motivo para ações judiciais, como ocorreu com o editor Jean-Jacques Pauvert, processado e multado em 1956 por divulgar a obra sadiana.

Nos anos 60, principalmente após o “Maio de 68”, a obra do Marquês começou a ser mais difundida. Sendo assim, parto do pressuposto de que as idéias libertinas de Sade parecem exercer certo fascínio entre os pensadores submetidos a contextos históricos, mais contemporâneos, marcados pela repressão, censura e autoritarismo, como no caso do Brasil. O trabalho está embasado teoricamente nos textos de Jean Orieux sobre A arte do biográfo (1986) e Pierre Bourdier, sobre A ilusão biográfica (2006) e tem como principal fonte a obra Sade: vida e obra (1978), de Fernando Peixoto.

Através dos séculos que nos separam da Revolução, Sade passou de agitador político para pornógrafo, daí para defensor do amor livre e, hoje em dia, autor Cult. Sade não é mais uma pessoa: como Che, ou Jesus Cristo, se tornou um símbolo, um mito passível de ser manipulado e maleado no que a sociedade quiser e, por consequência, a visão que se tem de Sade por dada sociedade revela mais sobre a mesma do que sobre Sade, pois como coloca Jean Orieux, do:

(...) convívio íntimo e prolongado nasce entre o biográfo e seu herói uma relação bastante curiosa. Não a que existe entre um romancista e suas criaturas, porque, por maior que seja a capacidade criativa do romancista, os seus personagens nasceram dele, só podem existir graças a ele, são, por mais que se queira, fictícios. Pelo contrário, eu sei, e não sou o único a sabê-lo, (...) que Talleyrand existiu, sem qualquer dúvida, em carne e osso, e os textos, que o evocam e entre cujas linhas descubro o seu rosto e as suas manigâncias, esses textos, dizia eu, não são letra morta, a vida corre e palpita através desses testemunhos. (ORIEUX, 1986, p. 45-6)

Os discursos elaborados em torno desse escritor libertino que influenciou uma época com suas idéias e ações possuem diversos matizes. Sade influencia o século XIX deixando as marcas de sua leitura seja na produção médico-psiquiátrica, seja na produção literária – particularmente nas tendências românticas do século XIX, com leitores como Baudelaire, Flaubert, Byron, Shelley, Saint-Beuve, Rimbaud, Julies Janin – e ainda deixando ainda claros resíduos de inspiração nas filosofias de Max Stirner e F. Nietzsche. Além de despertar o interesse em renomados acadêmicos brasileiros após a década de 60 do século XX.

Portanto, é importante discutir como esses testemunhos biográficos construíram vários marqueses de Sade, na medida em que atendiam as inquietações e aos valores próprios dos quadros históricos em que foram gestados. O culto à libertinagem protagonizado por Sade em suas obras e o alto preço que teve de pagar, com a própria liberdade, por defender suas idéias, desperta uma certa visão romântica por parte de seus biógrafos, inseridos quase sempre, em contextos sociais e políticos marcados por formas de vigilâncias e censuras muito rígidas. Vale ressaltar que tanto já existem diversos trabalhos biográficos sobre o marquês, bem como inúmeros exercícios de crítica literária em torno de sua obra, mas um estudo sobre as construções biográficas de Sade e suas implicações políticas e morais é ainda um empreendimento inédito.

O termo pornográfico não existia nesse momento, o nome dado a esse tratamento cultural do sexo era o de libertinagem. Segundo Raymond Trousson, em Romance e libertinagem no século XVIII na França, libertinagem caracterizava tanto uma escrita, quanto um comportamento engajado com a blasfêmia e mais ainda com “(...) uma escandalosa liberdade de costumes baseada na negação do pecado (...) e com o apelo à comunhão dos bens” (In: NOVAES, 1996, p. 165). Pornografia é uma invenção do século XIX, profundamente ligada ao desenvolvimento da cultura de massa, dos meios de comunicação e da pequena burguesia. Na época de Sade, seus livros não eram realmente entendidos como “pornográficos”. Escandalosos, sim, mas muito mais por causa de seu conteúdo iconoclasta do que por causa de representações explícitas de sexo. Essas últimas eram, afinal de contas, lugar comum na literatura até então, e não eram particularmente chocantes senão para os leitores mais pudicos.

Para a filósofa e escritora Simone Beauvoir (1961), a filosofia lúbrica e radical em torno da noção de liberdade, de Sade, precedia o existencialismo em mais de um século. Há quem o veja, ainda, como precursor do estudo do foco da sexualidade que permeia toda a psicanálise de Sigmund Freud. Após mais de dois séculos de sua morte, o marquês recebeu dos surrealistas o apelido de “divino”, entrando para o hall de gênios da literatura e da filosofia. Como coloca Eliane Moraes, em Sade: o crime entre amigos, os textos do marquês possuem “(...) relações estreitas com a sensibilidade vivida por seus contemporâneos” (In: NOVAES, op. cit., p. 250).

Diante dessas constatações, torna-se pertinente para uma analíse das construções biográficas em torno do marquês de Sade, as reflexões de Jean Orieux, em A arte do biográfo, acerca dos meandros e dos interesses que permeiam toda a atividade heurística dos biógrafos.



Considerações como essas podem auxiliar em uma pesquisa que vise discutir as finalidades políticas e morais que envolvem as elaborações discursivas em torno das identidades consideradas como desviantes ou, para me valer de um termo adotado pelo sociólogo e psicanalista Erving Goffman (1963), das identidades deterioradas pelas pechas da estigmatização social. O que está em pauta nesse trabalho é questionar e sondar as razões que levaram os biógrafos brasileiros a retirarem Sade do ostracismo, considerando que essa iniciativa também corresponde a uma inquietação histórica, e como se deu a recepção das idéias libertinas de uma vida em claustro em uma época marcada pela censura institucionalizada.

Também se torna pertinente citar as reflexões do sociólogo Pierre Bourdieu (2006) em torno da noção de ilusão biográfica. Essa ilusão é gestada quando os biógrafos ocultam em suas narrativas, sobre a vida de grandes personalidades, os dissabores, as vergonhas e os encontros com o azar vividos pelos biografados. Ainda segundo o autor:



Falar de história de vida é pelo menos pressupor – e isso não é pouco – que a vida é uma história e que, [...] uma vida é inseparavelmente o conjunto dos acontecimentos de uma existência individual concebida como uma história e o relato dessa história. [...] Tentar compreender uma vida como uma série única e por si suficiente de acontecimentos sucessivos, sem outro vínculo que não a associação a um ‘sujeito’ cuja constância certamente não é senão aquela de um nome próprio, é quase tão absurda quanto tentar explicar a razão de um trajeto de metrô sem levar em conta a estrutura da rede, isto é, a matriz das relações objetivas entre as diferentes relações. (BOURDIEU, 2006, p. 183)



Os textos sadianos e as abordagens biográficas em torno do marquês podem ser analisados como fontes entranhadas de história. O estudo da recepção sadiana nos espaços acadêmicos modernos é uma área ainda repleta de lacunas e, nesse sentido, ao me valer dos discursos biográficos como fontes para uma compreensão de como a figura de Sade é ressignificada pelos autores do século XX, é importante salientar que “na experiência estética, o sujeito tem a possibilidade de se afastar de si, de seus hábitos e valores cotidianos para se experimentar na alteridade do outro. É inegável, pois, o ganho da interpretação” (LIMA, 1979, p. 22). Portanto, depreender e fazer falar o que está dentro e fora dos textos biográficos de época e contemporâneos sobre a trajetória do marquês do Sade é essencial para que sejam ampliados os círculos de debates sobre esse polêmico escritor.

Na obra Sade: um anjo negro da modernidade (2000), Gabriel Giannattasio se refere à trajetória de Sade enquanto ator histórico enquanto um capítulo da história no campo da história das idéias. Nesse sentido, para Giannattasio (2000, p.48), as obras de Sade, mais que objetos de reflexão estética para a crítica literária, devem ser abordadas enquanto objetos destinadas a reflexões filosóficas, pois trata-se de um autor que “deseja tudo dizer, pois almeja tudo conhecer”. Nesse sentido, Giannattasio busca compreender como ocorreu uma profunda empatia por parte dos autores surrealistas do século XX com o teor das obras sadianas. A partir desse pressuposto, podemos entender o quanto de implicações políticas permeiam as apropriações contemporâneas de Sade, pois, ainda segundo Giannattasio:



Há entre Sade e o surrealismo uma rede de vasos comunicantes, construídos a partir da intricada interdependência da língua e da cultura francesa. Os traços da revolta em Sade e no surrealismo trazem as marcas de uma rebelião que vão além dos limites formais da língua – sabe-se o quanto os surrealistas experimentaram em matéria de linguagem – dirigindo suas energias contra o coração, este centro catalisador e propulsor dos valores de uma nação, contra o que deveria ser a identidade cultural de um povo. (GIANNATTASIO, 2000, p. 53)



Essa dimensão iconoclasta que diz respeito a umas das possibilidades interpretativas para a literatura sadiana atende, em cheio, aos interesses contestadores e sediciosos daqueles que almejam, por meio das idéias, afrontarem os ditames oficiais de uma ordem instituída através do autoritarismo e da repressão sistematizada. Trata-se de evocar a presença de uma identidade biográfica, tida apenas como ímpia e motivo para o esquecimento, que teceu uma séria crítica as hierarquias sociais e aos abusos de poder cometidos pelas elites aristocráticas de seu tempo. Nesse sentido, o crescente interesse pela biografia de Sade, no período que corresponde aos anos de chumbo da ditadura militar – no Brasil – é, antes de tudo, um interesse em se forjar, através da imagem de Sade, uma espécie de mito portador de toda a rebeldia suprimida e cerceada pelos dispositivos de censura política próprios dos governos militares.

Nesse sentido, torna-se revelador o título do capítulo Prefiro a morte do que a perda da liberdade, da obra Sade: vida e obra, publicada em 1978, de Fernando Peixoto. Nesse sentido, Peixoto destaca a angústia sofrida por Sade enquanto esteve encarcerado na cidade de Miolans, na Sardenha. O biográfo destaca, inclusive, as tentativas realizadas por Sade de subornar os oficiais da prisão para facilitarem uma possível fuga. Impossível não contextualizar toda essa apologia a liberdade realizada por Fernando Peixoto dentro da premissa de que esse biográfo brasileiro do Marquês esteve engajado com o que se pode teatro de resistência, durante toda a ditadura militar.

Peixoto, além da obra biográfica de Sade, é autor de uma série de livros cujos temas variam desde a analise da histeria anticomunista em Hollywood; a questão da abordagem de temas políticos no teatro e até uma biografia do poeta russo Maiakovski, famoso partidário do ideário socialista cujo desencanto com os rumos da Revolução Russa o levou a cometer suicídio. Nesse sentido, se na introdução da sua obra, Peixoto (1978, p. 11) considera que Sade é “produto da repressão”, seu estudo também se enquadra em uma espécie de:



(...) protesto em favor do homem livre, (...) [ou] denúncia de uma civilização fundamentada nos instintos planejadamente reprimidos, baseada na hipocrisia, no preconceito, na corrupção, na injustiça, na divisão social e na mais feroz crueldade. (PEIXOTO, 1978, p. 11)



Aos traumas vivenciados pelo Marquês durante seqüências ininterruptas de internações em instituições penais, desde a prisão de Vincennes até a temida Bastilha, Peixoto acrescenta sua própria experiência enquanto teatrólogo profundamente engajado com uma arte simpática ao ideário socialista. Nesse sentido, Peixoto também destaca, no capítulo Últimas obras de um aristocrata melancólico, um Sade profundamente preocupado com as grandes questões históricas de sua época na obra História secreta de Isabelle de Baviera, revisada em 1813, por volta de 1 mês antes de escritor morrer nas dependências do asilo de Charenton.

No citado romance, segundo Peixoto, temos um Sade, inclusive, tecendo algumas considerações sobre as diferenças entre o oficio do historiador e a atividade do romancista. Nesse sentido, Sade defende que o distanciamento temporal entre o historiador e os eventos que estuda é fundamental para que os fatos sejam apreendidos e compreendidos com fidelidade. Como coloca o biográfo, ao longo do romance, Sade “não somente conta a história, mas passa o tempo todo criticando os historiadores tradicionais que se limitam a repetir os dados conhecidos (...)” (PEIXOTO, 1978, p. 252). Partindo dessa visão que prezava pela necessidade da visão crítica em torno dos eventos históricos, Peixoto coloca que o último romance escrito pelo libertino é marcado por raras descrições de cenas eróticas, mas que está repleto de reflexões sobre:



(...) O mecanismo do poder, a ambição desmedida, o crime impune dos poderosos e a terrível e sangrenta política da corte, que move os acontecimentos históricos segundo interesses pessoais, massacrando o povo, totalmente isolado do processo político, servindo apenas para carne enviada as batalhas, provocadas pelos interesses mais mesquinhos e mais imbecis de um bando de ricos senhores, que cada vez desejam mais posses e mais poder; (...). (PEIXOTO, 1978, p. 253-4)



Nesse sentido, Fernando Peixoto revela ao leitor um Sade bastante diferente do que aquele autor bastante reconhecido pela minúcia, para muitos críticos literários, desconfortante pela qual descrevia cenas de mutilação, além do uso de lâminas, ferros em brasa, chicotes e correntes em vitimas suplicantes praticado por algozes entregues aos instintos mais voluptuosos, cuja ânsia por prazer não tinha limites e estava alicerçado, sobretudo, na humilhação e submissão do outro a situações de dor e tortura psicológica extrema.

Eliane Robert Morais, em Lições de Sade: ensaios sobre a imaginação libertina (2006), considera que este outro Sade que termina por surpreender o leitor com uma linguagem sofisticada e profundamente engajada com as grandes contestações filosóficas de seu tempo, bem própria dos guetos e das tavernas de quinta categoria por onde circulavam os livres pensadores da França do oitocentos, é, sem sombra de dúvida, o mesmo que almejou iluminar “as paixões mais tenebrosas do homem, as mais clandestinas, as mais proibidas. E, ao fazê-lo, ele dá voz à violência de cada um, responsabilizando cada individuo, e não a nação, pelo crime cometido” (MORAIS, 2006, p. 73).

Também é de Eliane Morais o estudo Sade: a felicidade libertina (1994). Nessa obra, bem anterior sobre sua pesquisa em torno da imaginação libertina do Marquês, temos uma afirmação que vale a pena citar: a autora afirma que Sade, ao passar grande parte da existência trancafiado em prisões e institutos psiquiátricos, transformou as situações de privação da liberdade que passou em pontos de partidas que lhe permitiram alçar longos e livres vôos imaginativos. Assim, houve “(...) a supremacia da imaginação sobre o biográfico” (MORAIS, 1994, p. 208).

Essa ruptura entre a realidade vivida pelo autor e o teor lúbrico e libertino de suas obras parece ser o grande motivo de frenesi entre o biográfo brasileiro e seu biografado francês. No panfleto Súplica de um cidadão de Paris ao rei dos Franceses, escrito por Sade, temos um texto que afirma essa versão filosófica do Marquês. No texto, Sade declara não ser um inimigo da monarquia, mas afirma que o maior culpado da Revolução Francesa foi o próprio rei. Mas segundo Peixoto, Sade tanto foi uma vítima da monarquia quanto da república francesa. É revelador, nesse quesito, as considerações de Peixoto sobre o discurso do escritor pronunciado em uma assembléia geral na cidade de Piques.

Segue o trecho:



(...) o direito fundamental de recusar e aceitar. A soberania é uma e indivisível e será destruída se for partilhada, será perdida se for transmitida. Sade não se refere as leis e decretos regulamentares, mas sim as normas constitucionais. E sugere um processo de centralismo democrático para que toda a Nação, reunida em assembléias parceladas, analise, discuta, debata cada proposta enviada pelos mandatários. (...) Enfim, é preciso sempre consultar o povo: é sobre essa parcela mais maltratada da população que as leis se abatem, e cabe a ela escolher democraticamente as leis as quais consente em se submeter, em pleno exercício de uma liberdade real. O discurso de Sade, ouvido duas vezes pela assembléia geral da seção de Piques, foi impresso e imediatamente enviado as outras 47 seções (...). (PEIXOTO, 1978, p. 185)





Peixoto carrega nas tintas ao pressupor um Sade antenado com idéias democráticas durante o alvorecer da república francesa. As idéias políticas de Sade caminham mais em direção a noção do regime do déspota esclarecido, do que, propriamente, a de uma monarquia “populista”. O biógrafo projeta suas ilusões em torno de uma verdadeira construção mítica que faz do biografado. Na verdade, não é novidade para os biógrafos se referirem aos seus objetos de estudo como pessoas póstumas, a frente de seu tempo, cuja compreensão da importância de seus legados não fora legível aos seus contemporâneos. Seria pensar, nessa modalidade de biografia, em uma verdadeira historia das idéias fora de seu lugar.

Ao desfrutar, durante boa parte da vida, de todas as vantagens que um sistema profundamente hierarquizado e alicerçado na soberania do absolutismo pode lhe proporcionar, sobretudo, na construção de sua formação intelectual, é evidente que Sade não almejava a implantação de uma democracia populista em um momento histórico em que as grandes correntes do pensamento de esquerda como o anarquismo, o socialismo e o comunismo, não passavam de embriões ainda em fase de gestação. O contexto de 70, do século XX, no qual se situa Peixoto é que estava bem mais próximo desse tipo de anseio.

Portanto, a partir das considerações de Bourdier e de Orieux, pode-se ver como ao longo das construções biográficas, estudiosos acabam, pela relação de empatia que possuem com o biografado, projetando sobre ele algumas das suas próprias inquietações filosóficas e políticas. O discurso biográfico, em se tratando de uma escolha narrativa, é dotado de uma série de implicações morais e até extra-cientificas. No caso de Sade, a longa apologia em prol da extrema liberdade individual, mesmo que isso implique na humilhação e na tortura do outro, que teceu é recepcionada pelo teatrólogo brasileiro Fernando Peixoto como uma espécie de grito de protesto contra o autoritarismo e a censura institucionalizada, própria do tempo que estava vivendo ao escrever Sade: vida e obra.





REFERÊNCIAS:





BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, Marieta de Morais & AMADO, Janaína (orgs.). Usos e abusos da história oral. 8ª. ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2006.



BEAUVOIR, Simone de. Deve-se queimar Sade? in: Novelas do Marquês de Sade. São Paulo: Difel, 1961.



GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4ª. ed. Tradução de Márcia Nunes. Rio de Janeiro: LTC Editora, 1963.



LIMA, Luís Costa (org.). A literatura e o leitor: textos de estética da recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.



MORAIS, Eliane Robert. Lições de Sade: ensaios sobre a imaginação libertina. São Paulo: Iluminuras, 2006.

_____. Sade: a felicidade libertina. Rio de Janeiro: Imago, 1994.



NOVAIS, Adauto (org.). Libertinos libertários. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.



ORIEUX, Jean. A arte do biográfo. In: LE GOFF, Jacques [et. alli.]. História e nova história. 3a. ed. Lisboa: Teorema, 1986.



PEIXOTO, Fernando. “Sade: vida e obra”. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1978.