quinta-feira, 17 de junho de 2010

Estratagema do amor - Sade

De todos os desvios da natureza, o que fez mais pensar, o que pareceu mais estranho a estes meio-filósofos que querem analisar tudo sem nada compreender, dizia um dia a uma das suas melhores amigas a Menina de Villebranche de quem vamos ter ocasião de nos ocuparmos em seguida, é este gosto estranho que mulheres duma certa construção, ou dum certo temperamento, conceberam por pessoas do seu sexo. Embora muito antes da imortal Safo e depois dela não tenha havido uma só região do universo nem uma única cidade sem nos oferecer mulheres com este capricho e embora, perante provas de tal força, parecesse mais razoável acusar a natureza de singularidade do que estas mulheres de crime contra a natureza, nunca todavia se deixou de vituperá-las, e sem o ascendente imperioso que sempre teve o nosso sexo, quem sabe se algum Cujas, algum Bartole, algum Luís IX não teriam imaginado fazer contra estas sensíveis e infelizes criaturas leis iníquas, como as que se lembraram de promulgar contra os homens que, construídos no mesmo género de singularidade, e por tão boas razões sem dúvida, julgaram poder bastar-se a si próprios, e imaginaram que a mistura dos sexos, muito útil à propagação, podia muito bem não revestir esta mesma importância para os prazeres. Deus nos livre de tomar qualquer partido a tal respeito... não é, minha cara?, continuava a bela Augustine de Villebranche atirando a esta amiga beijos que pareciam, contudo, um tanto suspeitos, mas em vez de iniquidades, em vez de desprezo, em vez de sarcasmos, todas armas perfeitamente embotadas nos nossos dias, não seria infinitamente mais simples, numa acção tão totalmente indiferente à sociedade, tão igual a Deus, e talvez mais útil do que se acredita na natureza, deixar cada um agir a seu gosto... Que se pode recear desta depravação?... Aos olhos de todo o ser verdadeiramente sensato, parecerá que ela pode evitar maiores, mas nunca se provará que possa conduzir a perigosas... Ah, justos céus, receia-se que os caprichos destes indivíduos de um ou outro sexo façam acabar o mundo, que ponham em leilão a preciosa espécie humana, e que o seu pretenso crime a aniquile, por não proceder à sua multiplicação? Reflicta-se um pouco sobre isto e ver-se-á que todas estas perdas quiméricas são inteiramente indiferentes à natureza, que não só não as condena, mas nos prova através de milhares de exemplos que as quer e as deseja; ah, se estas perdas a irritassem, tolerá-las-ia em milhares de casos, permitiria, se a progenitura lhe fosse tão essencial, que uma mulher só pudesse servir para isso durante um terço da sua vida e que ao sair das suas mãos a metade dos seres que ela produz tivessem o gosto contrário a essa progenitura no entanto exigida por ela? Digamos melhor, permite que as espécies se multipliquem, mas não o exige, e bem segura de que terá sempre mais indivíduos do que necessita, está longe de contrariar as inclinações dos que não têm a propagação como uso e que se repugnam de conformar-se a ela. Ah! deixemos agir esta boa mãe, convençamo-nos bem de que os seus recursos são imensos, de que nada que façamos a ultraja e de que o crime que atentaria contra as suas leis nunca estará nas nossas mãos. A Menina Augustine de Villebranche de que acabamos de ver uma parte da lógica, senhora das suas acções com a idade de vinte anos, e podendo dispor de trinta mil libras de rendas, decidira-se por gosto a nunca se casar; o seu nascimento era bom, sem ser ilustre, era filha única dum homem que enriquecera nas índias e morrera sem jamais a ter podido convencer ao casamento. Não o devemos dissimular, muito entrava desta espécie de capricho, de que Augustine acabava de fazer a apologia, na repugnância que testemunhava pelo himeneu; seja conselho, seja educação, seja disposição de órgão ou calor de sangue (nascera em Madras), seja inspiração da natureza, seja tudo o que se quiser enfim, a Menina de Villebranche detestava os homens, e totalmente entregue ao que os ouvidos castos entenderão pela palavra safismo, só encontrava volúpia com o seu sexo e só se satisfazia com as graças do desprezo que sentia pelo Amor. Augustine era uma verdadeira perda para os homens; alta, feita para ser pintada, os mais belos cabelos castanhos, o nariz um pouco aquilino, os dentes soberbos, e olhos duma expressão, duma vivacidade... a pele duma delicadeza, duma brancura, todo o conjunto numa palavra duma espécie de volúpia tão atraente... que era bem certo que vendo-se tão feita para dar amor e tão determinada a não o receber, podia muito naturalmente escapar a muitos homens um número infinito de sarcasmos contra um gosto, aliás muito simples, mas que privando, apesar disso, os altares de Safo duma das criaturas do universo mais bem feitas para os servir, devia necessariamente indispor os sectários dos templos de Vénus. A Menina de Villebranche ria satisfeita de todas estas censuras, de todos estes maus propósitos, e nem por isso se entregava menos aos seus caprichos.

OBS.: Quem desejar o texto por inteiro, solicite por email: clarilenemedeiros@hotmail.com

Contos Libertinos - Marquês de Sade

Entre a cidade de Menerbe, no condado de Avinhão, e a de Apt, em Provença, há um


pequeno convento de carmelitas isolado, denominado Saint-Hilaire, assentado no cimo de

uma montanha onde até mesmo às cabras é difícil o pasto; esse pequeno sítio é

aproximadamente como a cloaca de todas as comunidades vizinhas aos carmelitas; ali, cada

uma delas relega o que a desonra, de onde não é difícil inferir quão puro deve ser o grupo de

pessoas que freqüenta essa casa. Bêbados, devassos, sodomitas, jogadores; são esses, mais

ou menos, os nobres integrantes desse grupo, reclusos que, nesse asilo escandaloso, o quanto

podem ofertam a Deus almas que o mundo rejeita. Perto dali, um ou dois castelos e o burgo

de Menerbe, o qual se acha apenas a uma légua de Saint-Hilaire - eis todo o mundo desses

bons religiosos que, malgrado sua batina e condição, estão, entretanto, longe de encontrar

abertas todas as portas de quantos estão à sua volta.

Havia muito o padre Gabriel, um dos santos desse eremitério, cobiçava certa mulher de

Menerbe, cujo marido, um rematado corno, chamava-se Rodin. A mulher dele era uma

moreninha, de vinte e oito anos, olhar leviano e nádegas roliças, a qual parecia constituir em

todos os aspectos lauto banquete para um monge. No que tange ao sr. Rodin, este era homem

bom, aumentando o seu patrimônio sem dizer nada a ninguém: havia sido negociante de

panos, magistrado, e era, pois, o que se poderia chamar um burguês honesto; contudo, não

muito seguro das virtudes de sua cara-metade, era ele sagaz o bastante para saber que o

verdadeiro modo de se opor às enormes protuberâncias que ornam a cabeça de um marido é

dar mostras de não desconfiar de os estar usando; estudara para tornar-se padre, falava latim

como Cícero, e jogava bem amiúde o jogo de damas com o padre Gabriel que, cortejador

astuto e amável, sabia que é preciso adular um pouco o marido de cuja mulher se deseja

possuir. Era um verdadeiro modelo dos filhos de Elias, esse padre Gabriel: dir-se-ia que toda

a raça humana podia tranqüilamente contar com ele para multiplicar-se; um legítimo fazedor

de filhos, espadaúdo, cintura de uma alna* , rosto perverso e trigueiro, sobrancelhas como as

de Júpiter, tendo seis pés de altura e aquilo que é a característica principal de um carmelita,

feito, conforme se diz, segundo os moldes dos mais belos jumentos da província. A que

mulher um libertino assim não haveria de agradar soberbamente? Desse modo, esse homem

se prestava de maneira extraordinária aos propósitos da sra. Rodin, que estava muito longe de

encontrar tão sublimes qualidades no bom senhor que os pais lhe haviam dado por esposo.

Conforme já dissemos, o sr. Rodin parecia fazer vistas grossas a tudo, sem ser, por isso,

menos ciumento, nada dizendo, mas ficando por ali, e fazendo isso nas diversas vezes em que

o queriam bem longe. Entretanto, a ocasião era boa. A ingênua Rodin simplesmente havia

dito a seu amante que apenas aguardava o momento para corresponder aos desejos que lhe

pareciam fortes demais para que continuasse a opor-lhes resistência, e padre Gabriel, por seu

turno, fizera com que a sra. Rodin percebesse que ele estava pronto a satisfazê-la... Além

disso, num breve momento em que Rodin fora obrigado a sair , Gabriel mostrara à sua

encantadora amante uma dessas coisas que fazem com que uma mulher se decida, por mais

que hesite... só faltava, portanto, a ocasião.

Num dia em que Rodin saiu para almoçar com seu amigo de Saint-Hilaire, com a idéia

de o convidar para uma caçada, e depois de ter esvaziado algumas garrafas de vinho de

Lanerte, Gabriel imaginou encontrar na circunstância o instante propício à realização dos

seus desejos.

* Antiga medida de comprimento de três palmos. (N. dos T.) - Oh, por Deus, senhor magistrado, - diz o monge ao amigo - como estou contente de vos

ver hoje! Não poderíeis ter vindo num momento mais oportuno do que este; ando às voltas

com um caso da maior importância, no qual haveríeis de ser a mim de serventia sem par.

- Do que se trata, padre?

- Conheceis Renoult, de nossa cidade.

- Renoult, o chapeleiro.

- Precisamente.

- E então?

- Pois bem, esse patife me deve cem écus* , e acabo de saber que ele se acha às portas da

falência; talvez agora, enquanto vos falo, ele já tenha abandonado o Condado... preciso

muitíssimo correr até lá, mas não posso fazê-lo.

- O que vos impede?

- Minha missa, por Deus! A missa que devo celebrar; antes a missa fosse para o diabo, e

os cem écus voltassem para o meu bolso.

- Não compreendo: não vos podem fazer um favor?

- Oh, na verdade sim, um favor! Somos três aqui; se não celebrarmos todos os dias três

missas, o superior, que nunca as celebra, nos denunciaria à Roma; mas existe um meio de me

ajudardes, meu caro; vede se podeis fazê-lo; só depende de vós.

- Por Deus! De bom grado! Do que se trata?

- Estou sozinho aqui com o sacristão; as duas primeiras missas foram celebradas, nossos

monges já saíram, ninguém suspeitará do ardil; os fiéis serão poucos, alguns camponeses, e

quando muito, talvez, essa senhorazinha tão devota que mora no castelo de... a meia légua

daqui; criatura angélica que, à força da austeridade, julga poder reparar todas as estroinices

do marido; creio que me dissestes que estudastes para ser padre.

- Certamente.

- Pois bem, deveis ter aprendido a rezar a missa.

- Faço-o como um arcebispo.

- Ó meu caro e bom amigo! - prossegue Gabriel lançando-se ao pescoço de Rodin - são

dez horas agora; por Deus, vesti meu hábito, esperai soar a décima primeira hora; então

celebrai a missa, suplico-vos; nosso irmão sacristão é um bom diabo, e nunca nos trairá;

àqueles que julgarem não me reconhecer, dir-lhes-emos que é um novo monge, quanto aos

outros, os deixaremos em erro; correrei ao encontro de Renoult, esse velhaco, darei cabo dele

ou recuperarei meu dinheiro, estando de volta em duas horas. O senhor me aguardará,

ordenará que grelhem os linguados, preparem os ovos e busquem o vinho; na volta,

almoçaremos, e a caça... sim, meu amigo, a caça creio que há de ser boa dessa vez: segundo

se disse, viu-se pelas redondezas um animal de chifres, por Deus! Quero que o agarremos,

ainda que tenhamos de nos defender de vinte processos do senhor da região!

- Vosso plano é bom - diz Rodin - e, para vos fazer um favor, não há, decerto, nada que

eu não faça; contudo, não haveria pecado nisso?

- Quanto a pecados, meu amigo, nada direi; haveria algum, talvez, em executar-se mal a

coisa; porém, ao fazer isso sem que se esteja investido de poderes para tanto, tudo o que

dissentes e nada são a mesma coisa. Acreditai em mim; sou casuísta, não há em tal conduta o

que se possa chamar pecado venial.

- Mas seria preciso repetir a liturgia?

- E como não? Essas palavras são virtuosas apenas em nossa boca, mas também esta é

virtuosa em nós... reparai, meu amigo, que se eu pronunciasse tais palavras deitado em cima

de vossa mulher, ainda assim eu havia de metamorfosear em deus o templo onde sacrificais...

Não, não, meu caro; só nós possuímos a virtude da transubstanciação; pronunciaríeis vinte

mil vezes as palavras, e nunca faríeis descer algo dos céus; ademais, bem amiúde conosco a

cerimônia fracassa por completo; e, aqui, é a fé que faz tudo; com um pouco de fé

transportaríamos montanhas, vós sabeis, Jesus Cristo o disse, mas quem não tem fé nada faz...

* Antiga moeda francesa. (N. dos T.) eu, por exemplo, se nas vezes em que realizo a cerimônia penso mais nas moças ou nas

mulheres da assembléia do que no diabo dessa folha de pão que revolvo em meus dedos,

acreditais que faço algo acontecer? Seria mais fácil eu crer no Alcorão que enfiar isso na

minha cabeça. Vossa missa será, portanto, quase tão boa quanto a minha; assim, meu caro,

agi sem escrúpulo, e, sobretudo, tende coragem.

- Pelos céus, - diz Rodin - é que tenho uma fome devoradora! Ainda faltam duas horas

para o almoço!


OBS.: Quem desejar a continuaçao do conto, solicite por email: clarilenemedeiros@hotmail.com

MORAES, Eliane Robert. Lições de Sade: ensaios sobre a imaginação libertina. São Paulo, Iluminuras, 2006

Josiane Orvatich 1



Resumo

Eliane Robert Moraes é crítica literária e professora titular de Estética e Literatura da PUC-SP e do Centro Universitário Senac-SP, publicou, entre outros livros, Sade – A felicidade libertina e O corpo impossível – A decomposição da figura humana: de Lautréamont a Bataille. Seu mais recente ensaio sobre o imaginário erótico na literatura vem, com a elegância e profundidade constantes de sua obra, reunir quase vinte anos de pesquisas sobre o Marquês de Sade, priorizando a imaginação e a fantasia de sua “ficção indomável”.

Diversos textos compõem suas Lições de Sade que, não por acaso, começam e terminam com o tema das relações entre o Marquês e seus leitores. Mais que perguntar-se sobre o que Sade nos ensinaria, ou ainda, que lições teríamos de autor tão incorreto, Eliane percorre a fundo a relação do autor com os textos, iniciando por sua particular paixão pela leitura e pelos livros. O Marquês, ávido leitor, é preciso destacar como nos recomenda Eliane, ainda divertia-se com as cifras que inventava para as cartas que escrevia de dentro das prisões por onde passou.

Mais que prevenir-se contra seus possíveis inimigos, o Marquês desejava embrenhar-se num mundo de números e códigos, cujos sinais a serem decifrados o levavam ao mundo particular de sua imaginação. A relação com os textos será, nestes ensaios, privilegiada sobre qualquer tentativa de categorizar psicologicamente ou sociologizar sua obra.

Dois pontos devem ser destacados como chaves de leitura propostas pela autora: o favorecimento do mundo da imaginação em Sade – afastando-se de leituras facilitadoras que teriam pré-concebidos conceitos sobre o Marquês, como, por exemplo, o sadismo; e, ao debruçar-se sobre o universo deste faminto e guloso autor-leitor que foi Sade, investigar a existência de um leitor ideal desejado pelo Marquês, capaz de mergulhar em sua imaginação impossível e extrair dela o que a ele mais importava: uma filosofia lúbrica, em que o corpo não fosse separado das idéias, e em que o homem não fosse cindido. Este homem inteiro que
não nega suas paixões, mas serve-se delas como com quem consulta um cardápio – o próprio cardápio dos 120 dias, do qual podemos escolher o que mais nos apetece – é seu leitor ideal, o filósofo.

O filósofo capaz de dizer tudo, ou ainda, que parte de uma “filosofia que deva dizer tudo”, é convidado por Sade à cena para que sejam libertinos, afirma Eliane contrapondo-se à leitura de Simone de Beauvoir que aponta a desconfortável e rebaixada posição das vítimas.

O filósofo libertino e sua visão ousada, ou de “alma ousada”, somente ele seria capaz de ter o privilégio de ser seu leitor, adentrando, como sugere Eliane ao citar Annie Le Brun, o castelo de Silling – protótipo do universo sadiano – para ali desequilibrar-se infinitamente.

Neste desequilíbrio da violência erótica ao qual somos atirados ao ler Sade é que devemos permanecer para que a própria literatura não se torne por demais inofensiva. Eliane abre seu livro de ensaios tentando identificar este possível leitor ideal de Sade e encerra com artigo sobre o papel da literatura e seus efeitos sobre os leitores. A leitura é, portanto, ponto de partida e chegada das reflexões acerca do Marquês, desde sua própria condição de leitor assíduo até nós, seus leitores. Questão fundamental para se entender o lugar que sua literatura ocupou até então, do ostracismo e censura ao endeusamento urrealista.

Partindo da necessidade de certa identificação autor-leitor, ambos os filósofos de almas ousadas, Eliane debruça-se sobre a obra de Sade privilegiando o acesso ao seu texto pela via da imaginação e fantasia como espaços criados do devaneio. Investigando os laços de Sade com seu tempo, confrontará seus escritos aos do roman noir, febre gótica dos fins do século XVIII, aproximará a leitura fascinada dos surrealistas e rejeitará a interpretação foucaultiana que, segundo Eliane, enclausura os textos de Sade, aprisionando-o a seu tempo, como fato cultural datado. Mais próxima de sua visão sobre a imaginação sadiana estariam Barthes, Blanchot e Bataille que interpretam o claustro real do libertino à luz de uma liberdade que daí brota, afastando-se de qualquer condição social ou freio moral.

Todas estas tarefas esboçadas acima recebem no livro uma ordem, ou antes, uma divisão que nos possibilita uma maior proximidade com as idéias do Marquês e nos permite olhar mais de perto estas questões.

O livro está organizado em três partes, a primeira, Interpretações, teria como objeto central, segundo a própria autora, percorrer a obra de Sade e algumas questões de sua biografia que construam “seu notável domínio da fantasia sem o qual a libertinagem sadiana ficaria privada de sentido”. A segunda parte, Contexto, apresenta-nos um percurso histórico que contextualiza a obra do autor e o “gênero do deboche”, relacionando-os à libertinagem setecentista. A última parte do volume, intitulada Repercussões, discute a recepção da obra de Sade desde sua época até os dias de hoje.

Encontramos na primeira parte do livro, as Interpretações, uma investigação teórica acerca do Marquês que justifica sua exigência de que seria “preciso muita filosofia para me compreender...”. E é a partir desta concepção filosófica de um autor-leitor erudito que Eliane interpreta as implicações de sua filosofia lúbrica. Filosofia que ameaça nossa humanidade e que, portanto, de início provoca repulsa, segundo Barthes, mas que exige coragem para tomar o lugar sugerido por Sade, o de libertinos. É neste momento que Eliane discorda de Simone de Beauvoir por afirmar ser difícil compartilhar de um pensamento que deseja nossa morte e sujeição. Eliane defende o convite feito por Sade a almas ousadas, plenas de muita filosofia, para permitir-se aprofundar neste universo desconhecido da imaginação e da violência erótica.

Este universo tão temido iniciou-se como texto pela obra Dialogue entre um prête et um moribond, escrito em 1782 na prisão de Vincennes. Nele Sade já apresenta temas caros a toda sua filosofia, o ateísmo e o materialismo. Transformando em alcova lúbrica uma câmara mortuária, afirma Eliane, Sade estréia na literatura sem nenhuma timidez de principiante. Em sintonia com o espírito anti-religioso do fim do século XVIII, Sade por meio de seu personagem moribundo, defende o materialismo e a inexistência de Deus até o fim, este morrendo como viveu. A autora cita a Carta sobre os cegos de Diderot, do mesmo período, em que o matemático, personagem da carta, do mesmo modo argumenta sobre a morte de Deus, sem temer a própria morte, inserindo Sade neste movimento que culmina com o iluminismo.

O diferencial do texto sadiano, ainda que mergulhado neste espírito da época, é trazer a novidade da experiência, o que implica em pelo menos duas características de sua filosofia: o status da experiência alcança o status do pensamento, ou seja, “tanto a corrupção do corpo por meio das idéias quanto a corrupção das idéias por meio do corpo”, o que leva o padre a ceder à orgia no fim do conto, confirmando a teia que se forma entre ateísmo, afirmação do corpo e desamparo humano. A segunda implicação reside neste desamparo que se supera pelos prazeres do corpo e não por sua mortificação. A relação teoria-prática, prazeres soberanos-materialismo (“hoje homem, amanhã verme”) permeia toda a obra de Sade, levando-nos imediatamente a pensar em sua outra estréia nada tímida, agora no romance, Os 120 dias de Sodoma, cujas bases filosóficas estarão alicerçadas no excesso dos prazeres, vinculados a este princípio materialista capaz de “perpetuar o homem no universo”. Ou ainda podemos pensar em A filosofia na alcova, cuja volúpia descrita reforça a idéia de unidade corpo e alma, exploração dos prazeres até suas “derradeiras potencialidades” ou no “desregramento dos sentidos” como única forma de imortalidade da matéria, como esclarece Eliane.

Diante de toda essa filosofia lúbrica, como haver espaço para o amor, ápice da individualidade do desejo, como descreveu Barthes em Fragmentos de um discurso amoroso? Para responder a esta questão, Eliane investiga um outro Sade que, talvez, seja o mesmo Sade, sempre ligado aos vícios, mas que nos apresenta agora Os crimes do amor. Mesmo aqueles que cuidam para dissociar Sade do sadismo, afirma Eliane, sabem que a radicalidade de sua obra está em aliar erotismo e crueldade.

Que Sade é este, então, que nos traz textos sem descrições obscenas ou de suplícios, ou ainda sem discursos que justifiquem o crime? Momento de concordar com Simone de Beauvoir, Eliane a cita: “não é pela crueldade que se realiza o erotismo de Sade; é pela literatura”. Mais que “apologista do crime” ou “filósofo do mal”, resgata-se aqui o homem de letras que Sade sempre afirmou ser, completa a autora. Neste contexto, Eliane percorre a escrita de Sade para inseri-lo numa tradição literária que vai desde o gênero novela, bastante comum a partir da segunda metade do século XVII e adotado por Sade em muitos momentos, passando por seu diálogo com o roman noir e sua atmosfera sombria até sua relação com as narrativas de As mil e uma noites.

A complexidade das referências literárias e sua tradição, encontradas nos textos de Sade, remetem uma vez mais à erudição do autor e nos coloca diante de sua habilidade como escritor. Este é o ponto em que insiste Eliane para que possamos desvendar o possível mistério desses crimes do amor. Como escritor disposto a desvendar o homem tal como é “o escritor se permite excursionar com liberdade por regiões interditadas ao filósofo”. O homem de letras e o escritor se impõem ao filósofo, e aqui, para além de sua filosofia do mal, Sade escreve sobre o homem diante de suas maiores fraquezas, o amor e a religião, este o sentido de seus Crimes, menos cruéis fisicamente, mas nem por isso com “dor menos pungente”.

Talvez fosse interessante nos ater um pouco mais nesse mergulho da tradição literária em Sade no que diz respeito ao roman noir. Em vários momentos Eliane aponta a relevância dos laços de Sade com este movimento, além de contextualizar historicamente os textos do autor, preocupação sempre presente nos ensaios da autora. Cabe observar, ainda uma vez, que sua contextualização de Sade, tanto em relação ao “gênero do deboche” e da libertinagem, quanto em relação aos movimentos literários nunca se aproximam da leitura foucaultiana que aprisiona Sade em seu tempo, interpretando-o, como afirma a autora,  o homem reduzido ao silêncio” e ao confinamento, expressão do grande enclausuramento de sua época. Sua contextualização sempre privilegia a leitura da imaginação, tendo a literatura como lugar do ilimitado, de “um outro mundo” que não passe necessariamente por uma rede de poder que tudo absorve. A ficção do impossível, escrita pelo Marquês, não deve prestar contas a ninguém em seu mundo imaginário, conclui Eliane.

O roman noir teria sua certidão de nascimento com o livro O castelo de Otranto, escrito em 1765, por Sir Horace Walpole, inicialmente publicado sob pseudônimo e afirmado como manuscrito medieval italiano. Seu conteúdo seria o que hoje chamaríamos de clássico e até caricato romance de terror, tendo como cenário o castelo hostil e solitário, de corredores imensos, quartos frios, escadas em caracol, subterrâneos ocultos, esqueletos e barulhos de chaves, tempestades e portas rangendo e cujos personagens consistiam em uma bela e inocente heroína, perseguida pelo vilão e salva pelo herói.

Eiane narra as características destes romances seguindo de perto as descrições feitas por Howard Phillips Lovecraft para inserir em meio ao triunfo da razão iluminista, centro solar e metáfora da luz da época, esse gênero que surge extremamente popular em meio à Revolução Francesa. Também chamado de genre sombre, genre anglais, gênero gótico ou simplesmente o conto de terror, alcançou grande sucesso junto ao público, popularizando outros autores, muitos anônimos, e outros como Ann Radcliff, Mathew Gregory Lewis, Charles Maturin e ainda Bram Stocker como gótico tardio.

Estabelecendo o “mito noturno” do imaginário, como afirma Annie Le Brun citada por Eliane, o roman noir é reflexão sobre a violência instaurada em meio à evolução e capaz de dar voz às individualidades constrangidas e acuadas diante da política da época. Sade aparece aqui, continua a autora, para transbordar “e levar ao extremo” este mito noturno que aprova a violência individual, mas não deixa de ser político na medida em que recusa o homicídio constitucional generalizado da Revolução. Jean Fabre irá afirmar que havia “sadismo” aflorando por todos os lados, só lhes faltava mesmo um Sade. Eliane irá completar considerando que esta literatura veio revelar o lado obscuro da razão revolucionária e iluminista.

Ainda concernente ao roman noir, em sua extrema popularidade coincidente com um mercado editorial que se consolidava pelo gênero folhetinesco, as acusações de plágio eram inúmeras, tendo o próprio Marquês recorrido a ela, reivindicando sua originalidade. Para além das controvérsias da cópia – já que o próprio Walpole afirmou ter plagiado Shakespeare, e a partir daí vários autores escreviam sobre o mesmo mote, inclusive Sade – Eliane vem reforçar a idéia de um imaginário noturno da época, mais que plágio, um “sonho coletivo”, uma atmosfera onírica que tanto agradou aos surrealistas. Surrealistas estes responsáveis pela divinização do Marquês depois de anos de censura e ostracismo. E isto já diz respeito às Repercussões descritas por Eliane.

Entre as mais famosas repercussões do “enigma Sade” está a dos surrealistas. Fizeram de Sade praticamente um antecipador do movimento, levando André Breton a dizer que “Sade é surrealista no sadismo”.

A leitura surrealista de Sade, afirma Eliane, paira sobre questões como a onipotência do desejo, o imaginário erótico e o vínculo entre erotismo e liberdade. Eliane adverte, entretanto, que, mesmo os surrealistas tendo sido em grande parte responsáveis pela saída de Sade do ostracismo, outros leitores importantes já haviam revelado seu gosto por Sade, como Flaubert, Stendhal, Balzac, Chateaubriand e Lamartine, por exemplo.

Ainda assim, a “divinização” do Marquês veio mesmo com o século XX pelas mãos de Guillaume Apollinaire, em 1909, ao publicar escritos e uma biografia de Sade. A partir daí Sade ganhou lugar de honra na modernidade. Tornou-se referência para Artaud, Klossowski, Magritte, Salvador Dali, André Masson, Bataille, Michel Leiris, Robert Desnos, Octavio Paz, entre muitos outros. Ganhou pelo menos outras três biografias, de Maurice Heine, Gilbert Lély e Jean-Jacques Pauvert, este respondendo a um processo na justiça francesa na época em que publicou a obra completa do autor. Bataille afirmou que, se foi possível ao homem penetrar na consciência do significado da transgressão, foi porque Sade nos preparou o caminho e, com isso, abriu-nos ao mais assustador: “aquilo que mais violentamente nos revolta está em nós mesmos”.

Eliane investiga os temas abertos pelos estudos de Sade e trazidos à luz pelos surrealistas perpassando a questão do materialismo, com tônica acentuada na rejeição do primado do homem como referência, acentuando as modificações da matéria e as metamorfoses que desfazem a figura humana para darem lugar a formas monstruosas e ameaçadoras.

Imagens do mal, fascínio angustiante são alguns dos elementos que sobressaem na leitura do Marquês, tornando-se meio de subversão.


Apartir destas leituras e do próprio julgamento de Pauvert, Eliane encerra seus ensaios refletindo sobre a suposta inocência ou culpabilidade da literatura, como já havíamos enunciado no início deste texto. Ela se pergunta, afinal, “que tipo de subversão esse tipo de literatura (...) propõe para quem lê?” Ou ainda, que tipo de pensamento parte de transgressões fundamentais do homem, como incesto, tortura e assassinato?

Enfim, se interroga sobre essa literatura que encerra em si mesma imagens e representações do mal - e aqui ela se refere não somente a Sade, mas invoca a própria literatura batailliana.

Eliane aponta três leituras sobre esse suposto perigo. Roger Shattuck condena a literatura sadiana por apresentar, sim, perigo aos leitores, sendo sua concepção a de um leitor passivo diante de um texto ativo, capaz de ativar “fantasmas adormecidos”. Na contramão dessa concepção estão citados pela autora Octavio Paz, Maurice Heine e Henry Miller, afirmando a passividade ou inocência dos textos, estando os perigos concentrados na atividade ou “paixão” dos leitores. Uma terceira concepção, compartilhada por Eliane, seria a de Georges Bataille que, reconhecendo os perigos da literatura e como tal devendo esta se declarar “culpada”, aponta para uma parceria entre leitor e escritor, ou leitor e texto.

Há entre os dois uma “cumplicidade no conhecimento do mal”, Eliane cita Bataille e, nesta cumplicidade, se dá o risco de assumir a parceria, construindo-se, como leitor ativo, durante a leitura, como sujeito do conhecimento.

Vale lembrar aqui o primeiro ensaio deste volume de Lições em que os leitores são convidados a serem ousados, a mergulharem numa filosofia capaz de dizer tudo – Bataille aponta para a inorganicidade do texto que, portanto, pode dizer tudo, mas que, justamente por isso, torna-se perigoso ou transgressor. O esboço do leitor ideal de Sade, em sintonia com a obra, mas ao mesmo tempo preparado para o desconhecido, para o mergulho desconcertante e consciente do perigo, este é o convidado do Marquês, como nos mostra Eliane.


Nas repercussões a autora percorre ainda a leitura perversa dos médicos oitocentistas, a “fantasia raciocinante” de Sade por Octavio Paz, a particularidade e intimidade da leitura de Barthes, entre outras. Sem citar os inúmeros estudos sobre Sade que Eliane traz ao longo de seu texto e a sempre pontual e cuidadosa contextualização histórica da época do Marquês, iluminando seu tempo, sem apagar sua singularidade.

Irrelevante dizer o quanto é tarefa impossível dar conta do conteúdo de livro tão repleto de “delicadeza e rigor”, de autora tão erudita quanto o autor que aborda, esperando com isso estar instigando e convidando os leitores para este delicioso volume de ensaios, pleno de filosofia e desafiadoras lições lúbricas.

1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUCPR. e-mail:joorvatich@terra.com.br

Recebido em 10/06/2006; Aceito em 25/07/2006.

Revista de Filosofia Aurora

ISSN 0104-4443 e-ISSN 1980-5934

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Entrevista com Giannatasio - estudioso de Sade

Cartas aprofundam enigma do marquês encarcerado


Professor da UEL lança livro com cartas do Marquês de Sade, escritas na prisão de Vincennes. Textos mostram a formação do autor libertino


Homérico, cínico, dantesco, kafkiano, maquiavélico. Usamos essas palavras no dia-a-dia e muitas vezes não pensamos na origem delas. O mesmo se dá com os termos sádico e sadismo, que se referem ao prazer obtido às custas da dor alheia. As duas palavras, criadas pela psicopatologia do século XIX, têm origem no aristocrata francês Donatien-Alphonse François de Sade, o Marquês de Sade (1740-1814), talvez o mais famoso escritor libertino de todos os tempos.

Autor de clássicos da permissividade, como Justine e A filosofia na alcova, Sade passou grande parte de sua vida na prisão. Ateu, materialista, blasfemador, pornógrafo, iconoclasta e visceralmente individualista, foi encarcerado pelos três regimes políticos vigentes na França entre o final do século XVIII e o começo do século XIX. Foi preso durante o Antigo Regime, a Revolução e a Restauração, sob os governos de Luís XVI, Robespierre e Bonaparte. E sempre por motivos diferentes: loucura, perversão, incitamento ao crime e, pasmem, moderação. Isso mesmo: durante o regime do Terror, o Marquês de Sade foi acusado de “excessiva moderação” ao tentar livrar o pescoço dos condenados à guilhotina.

O historiador e professor Gabriel Giannattasio, da UEL, é um especialista em Sade. Em 1999, publicou o livro Sade – Um anjo negro da modernidade, sua tese de doutorado, em que discute a vida e a obra do marquês libertino.

Acaba de ser lançado o livro Cartas de Vincennes – Um libertino na prisão (Eduel, 154 páginas). A obra reúne 16 cartas escritas por Sade na prisão entre 1777 e 1784. As correspondências foram selecionadas, traduzidas e comentadas por Giannattasio.

As 16 cartas têm três destinatárias principais: a primeira mulher do escritor, Renné; a Senhora de Montreuil, a mais terrível das sogras (a acreditarmos em Sade, responsável por seu primeiro e longo encarceramento); e a Senhorita de Rousset (uma interlocutora do marquês).

Sade era sádico? A resposta, segundo o professor Giannattasio, não é tão simples como parece. O sadismo era apenas um dos aspectos desse turbulento romântico, dono de uma visão trágica da existência. As cartas de Vincennes, em vez de decifrar o enigma Sade, aprofundam-no. Acompanhe os principais trechos da entrevista com Gabriel Giannattasio e conheça um pouco mais do marquês libertino.

Entrevista
Gabriel Giannattasio, historiador e professor

“Sade chegou a ser condenado por ‘excesso de moderação’”

JL: De que maneira as cartas de Sade ajudam a compreender a vida e a obra do autor?

Gabriel Gianattassio –Eu acho que as cartas aprofundam o mistério de Sade. De certa forma, as cartas antecipam as obras do Marquês de Sade pelas quais ele ficaria conhecido. Quando ele está escrevendo as Cartas de Vincennes, ele não é o autor dos “120 Dias de Sodoma”, “Justine”, “Juliette”, “A Filosofia na Alcova” – enfim, ele não é um literato. O único texto que ele escreve no mesmo período dessas cartas é o “Diálogo entre o Padre e o Moribundo”. Depois desse período, quando realmente nasce o escritor Sade, o romancista Sade, as cartas se tornam burocráticas, administrativas. A energia literária do autor se desloca para as obras. As “Cartas de Vincennes”, ao contrário, representam o momento de gestação do grande escritor Marquês de Sade. Essas cartas têm um interesse todo particular porque mostram o processo do auto-elaboração do autor. Eu acho que as cartas já trazem o enigma, já contêm os personagens do romance filosófico sadiano.

O que o termo “sádico” tem a ver de fato com o Marquês de Sade?

O grande público muito provavelmente não leu uma obra de Sade, mas sabe o que é sádico e o que é sadismo. O que é o sadismo? É um reflexo da obra de Sade; e eu posso situar essa reflexão da obra do autor no século XIX. É uma leitura que a psicopatologia fez da obra do Marquês de Sade, da mesma forma que leu a obra de Masoch (literato alemão). Leram a obras desses autores não com interesse literário, mas com interesse médico, clínico. Da leitura dessas obras, cunharam expressões patológicas: sadismo, masoquismo, sadomasoquismo. Sádico se tornou o sujeito que tem prazer com a dor do outro. Essa leitura se consagrou – assim como as leituras de cínico, homérico, maquiavélico. Do ponto de vista patológico, o sadismo existia antes de Sade, da mesma forma que o maquiavelismo existia antes de Maquiavel. Maquiavel não produziu a corrupção da política: ele só a denunciou. Sade não inventa o sadismo: ele denuncia uma forma de crueldade que é típica do homem. Mas nós nos habituamos a identificar Sade com o sadismo; a maioria faz isso sem ter lido a obra de Sade. Sade é um autor que oferece múltiplas perspectivas. A leitura psicopatológica não é incorreta; mas é apenas uma entre muitas outras leituras de Sade. O problema é quando essa leitura se transforma na definição de Sade. Sade não é só isso. É também isso.

Como eram as relações de Sade com o Iluminismo?

Toda análise que eu faço indica que Sade estava na contracorrente do Iluminismo. Paradoxalmente, ele era herdeiro do Iluminismo, mas, ao colocar o corpo como instância última para julgar os fenômenos, distancia-se dos outros autores iluministas. Ele perverte o Iluminismo ao se contrapor à razão. Sade busca a razão do corpo; e percebe que o corpo não tem uma só razão. Há um livro de Sade que é exemplar nesse sentido: “A filosofia na alcova”. É o pensamento submetido ao crivo do corpo. A imagem da alcova é inicialmente arquietônica: no castelo aristocrático, era o espaço que estava entre o quarto e a sala, entre o mais íntimo e o mais público da casa. Em certo momento, ele diz: “Meu corpo de manhã tem uma disposição diferente da do meu corpo à noite. Posso acordar o mais virtuoso dos homens e me deitar o mais vicioso.” Diante das necessidades corpóreas, como eu posso ter uma única razão que dê conta de tanta multiplicidade. Sade é o materialismo levado às últimas consequências. Sade não se dispõe a fazer concessões. Isso explica, em parte, a façanha de Sade: ele conseguiu ser encarcerado pelos três regimes que a França conheceu do século XVIII para o XIX: o Antigo Regime, a Revolução e a Restauração.

Como foi o comportamento de Sade durante a Revolução Francesa, especificamente durante o período do Terror? Da mesma forma como em outras dimensões, a relação de Sade com a Revolução Francesa foi paradoxal. Sade era um aristocrata de nascimento, diferentemente de boa parte da aristocracia pré-revolucionária, formada por nobres que adquiriram títulos. Só que ele é posto em liberdade pela Revolução Francesa, em 1790. Até pouco antes da revolução, ele estava preso na Bastilha. Às vésperas da Tomada da Bastilha, Sade é transferido para outra prisão. Sade acredita que perdeu o texto que ele estava escrevendo na Bastilha – em letras minúsculas, em papéis que eram enrolados e escondidos na cela. “Choro lágrimas de sangue”, diz Sade, lamentando a perda do texto. Mas o manuscrito não se perdeu: é “As 120 Jornadas de Sodoma”, que foi recuperado no começo do século XX, em um sebo da Alemanha. Com a queda do Antigo Regime, Sade é posto em liberdade e acaba assumindo certas funções públicas no período revolucionário. Com o regime do Terror, ele é colocado sob suspeição, desta vez por outro motivo. Os revolucionários começam a desconfiar da atuação pública do Sade. Eles acham que o Sade fica tentando encontrar atenuantes para livrar o pescoço dos condenados à guilhotina. E Sade diz claramente – em suas correspondências – que é radicalmente contrário à pena da morte. Ele é acusado de quê? Excesso de moderação! Mais um paradoxo. Os revolucionários prendem Sade por excesso de moderação! Ele é condenado à guilhotina e só não morre porque o regime do Terror cai pouco antes da execução da sentença. Havia uma lista de condenados: não chegou a vez dele. Da janela da prisão, ele testemunhava diariamente as execuções na guilhotina. Cai o Terror, ele é posto novamente em liberdade. A relação de Sade com os regimes políticos é sempre conflituosa e paradoxal. Na Restauração, já com Napoleão Bonaparte no poder, ele é preso por outro motivo.

Sob Napoleão, Sade é julgado pelos padrões da saúde mental – e acabará morrendo no hospício. Que ele tinha de ser preso, era ponto pacífico. A dúvida é se deveria ser preso como louco ou como criminoso.

O motivo da terceira prisão – em 1801 – é a autoria dos romances “Justine” e “Juliette”. São dois romances publicados no fim do século XVIII que contam a história de duas irmãs. Esses romances podem ser lidos de forma independente, mas há uma unidade entre eles. Os títulos são “A nova Justine ou Os infortúnios da virtude” e “Juliette ou As prosperidades do vício”. Esses livros são publicados – como era uma característica da literatura erótica e pornográfica do século XVIII – anonimamente. Vários outros escritores fizeram isso quando produziam a chamada “literatura menor”. Só que descobrem que ele é o autor desses dois romances considerados imorais na época – e por isso ele é encarcerado. Nesse momento, já há uma discussão em torno do regime de encarceramento. Até aquele momento, os criminosos e loucos ficavam presos no mesmo lugar. No fim do século XVIII e começo do século XIX, começam a separar os presos que cometeram delitos comuns e os chamados loucos. A dúvida é: onde vamos prender o Sade – no hospício ou na cadeia? Ele era um problema até na hora de prendê-lo! Há uma discussão que é relatada pelos biógrafos. O médico diz que ele tem de ficar no hospício; o diretor da prisão diz que ele tem de ficar na cadeia. Esse período do último internamento é retratado no filme “Crônicas proibidas do Marquês de Sade”. É a época em que ele começa a escrever peças de teatro e dirigir os internos em encenações.

Nessa época, Napoleão era considerado um herói. E Sade era considerado louco ou criminoso. Não é mais um paradoxo?

A existência de Sade é paradoxal.

A filosofia na alcova - Sade

Prefácio á Edição Original


Habent sua fata libelli. Os maus livras também têm seu destino. A obra que estamos em vias de entregar ao público chocará, sem dúvida, aos leitores menos avisados. A crueza das cenas de deboche e a violência dos ataques a todos os princípios da moral consagrada abalam mesmo ao espírito mais habituado a leitura fortes. A depravada orgia da imaginação do famigerado Marquês é tamanha que ninguém o superou até agora e sua obra é, ainda hoje, o melhor documento dos desvarios a que pode atingir a mente humana Nada ele respeita. A religião, a moral, os costumes, os mais puros sentimentos de família a amizade, os nobres impulsos do coração humano são vilipendiados por este espírito doentio e degenerado. Aqueles que tiveram oportunidade de se informar sobre a patologia do espírito humano, os que se interessam pelo estudo das anormalidades sexuais, não estranharão, evidentemente, este pesadelo monstruoso. Para estes, a presente obra valerá como um texto para estudo. Nenhum sexólogo, nenhum psiquiatra, poderá ignorar este documento. Aí está nossa justificação, ao publicá-lo. Ainda mais. Para os leitores e mesmo para os inexperientes, esta leitura, estamos certos, jamais será perniciosa. O espírito são repelirá sua brutal pornografia e sua álgida libidinagem. Quem dispuser de um sólido patrimônio moral repudiará, automaticamente, as elucubrações extravagantes e infantis do autor e, certamente, robustecerá suas crenças e seus princípios ante a insanidade de seus cínicos argumentos. Aliás, para invocar ainda uma verdade consagrada: é preciso conhecer o mal para saber evitá-lo.

Quem foi, entretanto, o Marquês de Sade? Donatien Alphonse de Sade nasceu em dois de junho de 1740. Contava quatro anos quando foi viverem companhia de sua avó em Avinhão. Três anos mais tarde, passou a morar com um tio que o educou até 1750, época em que foi enviado ao colégio Luis-le-Grand, em Paris. Ao sair do colégio, ingressa na Cavalaria Ligeira. Chega logo a alferes do Regimento Real e em seguida a capitão do 7° de Cavalaria, com o qual participa, na Alemanha, da Guerra dos Sete Anos.

Regressa a Paris em 1763 e no mesmo ano se casa por imposição da família. Aqui começa o drama. Sade ama, na realidade, a irmã daquela que lhe destinam e seus futuros sogros, percebendo isso, internam-na num convento. O casamento realiza-se, entretanto. Revoltado, Sade se entrega ao deboche - em companhia de conhecidos libertinos, como o Duque de Fronsac e o Príncipe de Lamballe. Em consequência, mas por motivo não perfeitamente esclarecido, é preso e internado em Vincennes por dois meses. Até 1768 decorre sem novidade sua existência. É então que ocorre o célebre caso de Rosa Keller, prostituta ou simples mendiga que Sade sequestra numa sua propriedade e a quem sevicia, chegando mesmo a feri-la em várias partes do corpo com uma navalha.

Segue-se outro período de tranquilidade até 1772: o Marquês vive em suas propriedades da Provença. Sua mulher vem reunir-se, então, a ele e comete a imprudência de trazer consigo a irmã recém saída do convento. Sade não resiste. Faz a côrte à sua cunhada e como esta resista, embora o ame, engendra um estratagema para rendê-la. Em Marselha, acompanhado de seu fiel criado, compra uma caixa de bombons e neles mistura cantárida. Vai depois a um meretrício e serve as guloseimas às rameiras que, excitadas pela droga, entregam-se à maior orgia, promovendo grande escândalo. Era o que desejava. De posse de uma ordem de prisão que ele mesmo faz questão de obter de um seu amigo membro da justiça, apresenta-se à sua cunhada e declara-lhe que foi em consequência de sua recusa que praticou aquilo e que se submeterá ao castigo, ao suplício da roda, se ela não o acompanhar na fuga. Recolhe-se com ela em Florença, na Itália, e aí vive alguns anos. Com a morte de sua companheira volta para a França, onde é detido em consequência do escândalo de Marselha. Foge da prisão com auxílio de sua fiel e dedicada esposa, que tudo lhe perdoava. Não pode, entretanto, viver pacificamente em seu lar. Ligando-se a urna rameira, volta à Itália e aí permanece até 1777, quando retorna à França. Em 1778, ainda com auxílio da esposa, consegue a revisão do processo de Marselha mas a sogra, que não o quer ver solto, consegue que seja anulada a decisão que o inocentava e Sade é recolhido de novo a Vincennes. Passa seis anos nesta prisão (1778-1784), quatro na Bastilha (1785-1789) e um Charenton, de onde em 29 de março de 1790, em consequência de um decreto da Assembléia Constituinte, é libertado. Suas atividades no desenrolar da Revolução tomam-no suspeito e ele é novamente preso em 93. Só consegue de novo a liberdade em 94. Até 1801 vive tranquilamente ocupado em atividade literárias. Nesta data, tendo publicado um folheto dirigido contra Josefina de Beauhamais e Napoleão, é detido e internado como louco no hospício de Sainte-Pélagie. Nunca mais verá a liberdade. Em 2 de dezembro de 1814, morre, aos setenta e quatro anos de idade. "A Filosofia na Alcova" (La Philosophie dans le boudoir) apareceu pela primeira vez em 1795 como "obra póstuma do autor de Justina", em dois volumes ilustrados. Constitui o mais expressivo dos escritos do Marquês nas práticas do vício. É uma antologia da libertinagem.

Outras obras do autor: "Justine, ou les Malheurs de Ia Vertu", "Juliette, ou Ia Suite de Justine",

"Soloé et ses Deux Acolytes".


OBS.: quem desejar o texto completo pode solicitar por email: clarilenemedeiros@hotmail.com