terça-feira, 3 de janeiro de 2012

A filosofia na alcova : Breves considerações

DICA DE LEITURA

  A filosofia na alcova data de 1795 e é composta de sete dialógos onde acompanhamos a educação sexual, ou antes, a formação libertina de uma garota de 15 anos, Éugenie. No excerto ora apresentado, Sade prossegue em suas inventivas contra o cristianismo, essa "quimera", e afirma que a consolidação do republicanismo nascente depende da extinção dos cultos. Muitos estudiosos chamaram a atenção para o fato de Sade ter posto, em meio a uma orgia, essa frase na boca de um dos personagens: "Franceses! Fazei mais um esforço se quiserdes de verdade ser republicanos". Para Sade, a mudança política levada a cabo pela Revolução ainda precisava ser instituida no plano "moral".

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

A obra literária de Sade: Como esta surge?

 ( A Bastilha - Sade tambem passou grande parte do seu tempo trancafiado por aqui)

“A obra literária de Sade nasce na prisão, nasce da prisão. Uma
obra vigorosa, polêmica, certamente discutível em muitos pontos,
romances e novelas cheios de repetições e páginas cansativas,
pensamento filosófico parcialmente inaceitável, explosão estética
de um individualismo irremediável, personagens estereotipados a
partir da necessidade de expor teses existenciais fascinantes mas
fantasiosas e muitas vezes quase para-fascistas, mas ao mesmo
tempo obra revolucionária por sua coragem em denunciar os
valores falsos de uma civilização podre, por reivindicar com
eloqüência e paixão a liberação do homem de uma milenar cadeia
de preconceitos que reprimem sua íntegra e verdadeira realização
como individuo.” (PEIXOTO, 1978, 75)

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Breves considerações sobre a literatura erótica





Por Carlos Higgie (do livro Caleidoscópio)
 Produzir textos eróticos, escrever sobre algo tão intenso e tão humano, parece que condena àqueles autores, que a tal tarefa se lançam, a uma espécie de segundo plano, a mergulhar num mundo obscuro, a serem tachados de produtores de subliteratura ou simplesmente pornografia. Muitos críticos acreditam que produções com alto conteúdo erótico não acrescentam nada à Literatura e até distorcem um pouco a percepção. Para eles, são livros sem grande conteúdo literário que, apoiados na sua carga erótica, caem no gosto do público e chamam à atenção das forças conservadoras, alimentando, ainda mais, sua fama ao serem censurados e proibidos.
Vários autores concordam que existe uma linha indelével, quase imperceptível ou talvez inexistente, entre o erótico e o pornográfico. Quem é capaz de determinar os limites? De afirmar, com autoridade e livre de preconceitos, o que é pornografia e o que é erotismo? Tudo está na mente de quem lê e interpreta.
Afirma categoricamente Octavio Paz, na sua obra Um Mais Além Erótico: Sade (1999)
Todos os atos eróticos são desvarios, desarrumações; nenhuma lei, material ou moral, os determina. São acidentes, produtos fortuitos de combinações naturais. Sua diversidade mesma delata que carecem de significação moral. Não podemos condenar uns e aprovar outros enquanto não saibamos qual é sua origem e a que finalidade servem. A moral, as morais, nada nos dizem sobre a origem real de nossas paixões (o que nos impede de  legislar sobre elas, atrevimento que deveria ser suficiente para desacreditá-las).
Na corda bamba, equilibrando-se para não cair no ridículo, no ostracismo ou no abismo da condenação pública, o autor que se atreve a produzir relatos, carregados de erotismo, mergulhando nesse mundo incrível, borbulhante, que é a sensualidade humana, deve entender que nem sempre será reconhecido, apesar de ser lido com fruição na intimidade.

Sade e suas obras: eróticas ou pornográficas?


 Por Clarilene Medeiros

No contexto sócio-cultural do século XVIII, a leitura surgiu como um instrumento para a formação de uma identidade extremamente individual, sem fazer referência ao passado ou ausência de passado de sua família, e também funcionava como forma de agrupar as classes médias urbanas (em torno dos gabinetes e sociedades de leitura). Alguns dos livros dessa época tinham um caráter especial: eram proibidos. No entanto, esses livros não eram considerados literatura pornográfica e proibidos somente porque atentavam contra os bons costumes. O nome dado a eles era bastante particular: livros filosóficos. Segundo Robert Darnton, ao discutir as implicações políticas dessa forma de literatura, havia um alto preço a ser pago por esses autores desajustados diante do esprit de finesse predominante nos salões parisienses:

A vida dos subliteratos era dura e cobrava um tributo psicológico; as “fezes da literatura” não enfrentavam apenas o fracasso, mas também a degradação – e tinham de fazê-lo sozinhas. O fracasso gera solidão, e as condições do underground eram adequadíssimas para isolar seus habitantes. (...) Em suas mansardes de quarto ou quinto andar, antes que Balzac as romantizasse, os philosophes injustiçados compenetravam-se de que eram mesmo o que Voltaire deles dissera: Lê canaille de la littérature [a canalha literária].  Como conviver com tão dura constatação? (DARNTON, 1987, p. 37-8)

 O termo pornográfico não existia nesse momento, o nome dado a esse tratamento cultural do sexo era o de libertinagem. Segundo Raymond Trousson, em Romance e libertinagem no século XVIII na França, libertinagem caracterizava tanto uma escrita, quanto um comportamento engajado com a blasfêmia e mais ainda com “(...) uma escandalosa liberdade de costumes baseada na negação do pecado (...) e com o apelo à comunhão dos bens” (In: NOVAES, 1996, p. 165).  Pornografia é uma invenção do século XIX, profundamente ligada ao desenvolvimento da cultura de massa, dos meios de comunicação e da pequena burguesia. Na época de Sade, seus livros não eram realmente entendidos como “pornográficos”. Escandalosos, sim, mas muito mais por causa de seu conteúdo iconoclasta do que por causa de representações explícitas de sexo. Essas últimas eram, afinal de contas, lugar comum na literatura até então, e não eram particularmente chocantes senão para os leitores mais pudicos.
Para a filósofa e escritora Simone Beauvoir (1961), a filosofia lúbrica e radical em torno da noção de liberdade, de Sade, precedia o existencialismo em mais de um século. Há quem o veja, ainda, como precursor do estudo do foco da sexualidade que permeia toda a psicanálise de Sigmund Freud. Após mais de dois séculos de sua morte, o marquês recebeu dos surrealistas o apelido de “divino”, entrando para o hall de gênios da literatura e da filosofia. Como coloca Eliane Moraes, em Sade: o crime entre amigos, os textos do marquês possuem “(...) relações estreitas com a sensibilidade vivida por seus contemporâneos” (In: NOVAES, op. cit., p. 250).

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Nota de esclarecimento!



Para quem acredita que Sade fez tudo o que escreveu. O mesmo tece o seguinte comentário:

"Concebi tudo o que se pode conceber nesse gênero [ trata-se do gênero sexual ], mas naturalmente não fiz tudo o que concebi nem com certeza o farei jamais." ( Citado por Simone de Beauvoir)

Inclusive, muitos estudiosos tem-se questionado se de fato Sade não seria sexualmente débil, isto porque em muitos dos seus personagens a questão da dificuldade na erejão e na ejaculação era predominante, daí pensa-se que o Marquês conheceu esses pavores. Mas, isso é apenas uma discussão escolástica, pois pouco se sabe sobre o verdadeiro Marquês.

Um dos melhores vídeos já produzidos! O jogo de palavras com o Marquês de Sade é simplesmente perfeito. O refrão, em francês, segue abaixo: Sade, dis-moi Qu'est-ce que tu vas chercher? le Bien par le Mal la Vertu par le Vice Sade, dis-moi, Pourquoi l'evangile du Mal? Quelle est ta religion, Ou sont tes fideles? Si tu es contre Dieu, tu es contre l'Homme

"Matem-me ou aceitem-me assim, porque eu jamais mudarei."



" Voluntarioso, colérico, arrebatado, extremado em tudo, de um desregramento de imaginação quanto aos costumes como igual nunca houve, ateu até o fanatismo, eis em duas palavras como sou; e repito: matem-me ou aceitem-me assim, porque eu jamais mudarei." ( Sade citado por Simone de Beauvoir, 1955)

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Frases do Marquês de Sade


"Só me dirijo às pessoas capazes de me entender, e essas poderão ler-me sem perigo."


"Antes ser um homem da sociedade, sou-o da natureza."


"Quem sabe se não teremos de ultrapassar muito a natureza para perceber o que ela nos quer dizer?"

"...e que nada nem ninguém é mais importante do que nós próprios. E não devemos negar-nos nenhum prazer, nenhuma experiência, nenhuma satisfação, desculpando-nos com a moral, a religião ou os costumes."


"As paixões humanas não passam dos meios que a natureza utiliza para atingir os seus fins."

OBS.: Estas imagens são do filme" Contos proibidos do Marquês de Sade"

domingo, 28 de agosto de 2011

Sade é um autor perigoso?

A esta questão Octavio Paz responde de forma um tanto diversa do autor do conhecimento proibido. Diz ele: " não acredito que haja autores perigosos, melhor dizendo, o perigo de certos livros não está neles próprios, mas nas paixões de seus leitores. Semelhante resposta propõe Murice Heine, o primeiro biógrafo do marquês, ao ser interpelado com a mesma indagação:" Todos os livros, uma vez nas mãos de degenerados, podem ser considerados perigosos. Não é possivel prever que impulso mórbido um degenerado pode receber da mais inocente leitura. Uma narrativa sobre a vida dos santos, ou outra sobre a paixão de Joana D´Arc, pode perfeitamente levar um desses infelizes a se apoderar de sua irmãzinha e assá-la viva..."

O "Divino Marquês" dos Surrealistas

(Imagem de André Breton)

"Sade é surrealista no sadismo" - a frase publicada no primeiro Manifesto do Surrealismo, em 1924, não deixa dúvidas quanto a admiração que André Breton e seus companheiros denotavam ao marquês já nos primórdios do movimento. Ao lado de algumas das afinidades eletivas do grupo - como Chateaubriand, Baudelaire, Rimbaud, Jarry ou Roussel -, o autor de Justine era aclamado pelos signatários como homem de letras ou filósofo, mas sim por aquilo que lhe era mais próprio, ou seja, pela singularidade de um imaginário erótico ao qual seu nome estava definitivamente vinculado. A leitura surrealista de Sade concentra-se, portanto, nos domínios do desejo.


Lições de Sade - Eliane Moraes


Sinopse - Lições de Sade - Ensaios sobre a imaginação libertina - Eliane Robert Moraes

Publicada na clandestinidade, sentenciada ao fogo, proibida ou censurada, a obra do marquês de Sade restou condenada ao silêncio por quase dois séculos. Até hoje - quando o escritor 'maldito' parece ter cedido vez ao 'clássico' -, a indomável ficção sadiana ainda dá margem a especulações que, não raro, desembocam em equívocos. Desvios de tal natureza costumam reduzir o autor à idéia de sadismo, ora incorporada por discursos científicos, ora explorada pelo mercado. Visões comprometidas, sobretudo se prescindem da leitura atenta do mestre de todas as libertinagens. Nada mais oportuno, portanto, do que voltar às raízes do pensamento e da vida do polêmico marquês para compreender a trama perversa do seu imaginário - tão difícil de ser qualificado. Dotados de rara clareza, os ensaios de Eliane Robert Moraes configuram um olhar que privilegia a força imaginativa de Sade. Propositor de um erotismo sem precedentes, o criador da 'Sociedade dos Amigos do Crime' funda um domínio único de expressão literária, marcado pelo excesso, cujos personagens devem ser compreendidos para além de qualquer alusão realista. Procurando contemplar essa visão, as reflexões aqui apresentadas circulam entre a literatura, a filosofia e a história, voltando atenção especial aos detalhes que constituem a impressionante arquitetura erótica proposta pelo escritor francês. Por isso mesmo, justifica-se o destaque dado a temas inesperados como as sociedades secretas da libertinagem, a alimentação dos devassos, ou a paisagem noir dos castelos do deboche. Essa diversidade também está presente nos comentários sobre as repercussões da obra sadiana, que constituem verdadeiro testemunho do seu efeito perturbador. Da exaltação do 'divino marquês', promovida pelos surrealistas, às reflexões que lhe dedicaram Octavio Paz ou Roland Barthes, o que se percebe é a notável e seminal influência da imaginação libertina sobre muitos autores que lhe sucederam. Lidos em conjunto, os textos de Lições de Sade expõem o aprendizado de uma leitora exigente, que vem freqüentando a literatura libertina há duas décadas. Eliane Robert Moraes, dotada de estilo sagaz e elegante, revela uma sintonia fina com os ensinamentos sintetizados na frase de um dos mais lascivos personagens do marquês - 'Toda a felicidade do homem está na imaginação'. O mesmo vale para os leitores destas lições.

Sade - A felicidade Libertina/ Eliane Moraes


Prefácio

Estudando uma obra complexa como a de Sade, o especialista pode ver-se tentado a encontrar seu sentido, sua coerência. Não é o que faz Eliane Robert Moraes nesse livro, e este me parece ser o seu grande mérito. Se ela buscasse pôr ordem numa produção tão vasta e por vezes desencontrada, na qual fica difícil conhecer qual a parte da obra, qual o quinhão da vida, certamente acabaria perdendo o sabor do caos com que Sade acolhe seu leitor: a desordem é, nele, importante. Algo de bastante fundamental na literatura e na arte começa a acontecer em seu tempo, que podemos resumir em duas características. Primeira, a vida, que antes se apagava e desfazia ante a obra, vai-se tornando quase tão relevante quanto esta, em artistas que certamente, como hoje, não passam de uma minoria, mas mesmo assim significativa. Faz parte, portanto, da obra sadiana a sua vida irrequieta, à beira do crime e da reclusão - como fazem parte da biografia de Sade seus livros; mais tarde, também será impossível falar de Gauguin sem a ruptura que ele efetua com o mundo bem-pensante e sua partida para Taiti, ou de Van Gogh sem a orelha cortada e o suicídio, ou de Toulouse-Lautrec sem o aleijão. Tudo isso podem ser anedotas, mas elas assumem uma importância de que não temos paralelo nos autores da era chamada clássica, ou talvez barroca; corrigindo: até o século XVIII a biografia pode em certos casos ser importante para conhecer o autor, mas ela é apenas explicativa (como no caso do jansenismo de Pascal e Racine), ao passo que em autores mais recentes ela adquire uma densidade quase comparável à da obra. Ou, melhor dizendo: ela é inquietante como a obra. E esta é, seguramente, a segunda característica que descortinamos desde Sade. A presença da vida na obra, e por vezes da obra na vida, não é de ordem neutra. Não se limita a esclarecer, a sanar pontos obscuros. Ao contrário, amplia até a desmedida o obscuro, o perturbador. Traz o espectro da loucura ou, pelo menos, o dos limites fraturados da razão. É o caso dos pintores que mencionei, como também o de Nietzsche ou o dos grandes teatrólogos escandinavos de fins do século XIX. Em suma, a vida entra em cena na obra como um elemento quase destruidor, que aparece para trazer a guerra e não a paz, para embaralhar e não para ordenar.

Se estas observações valem para a grande novidade que Sade nos proporciona - talvez o primeiro grande escritor de ficção a instaurar relações assim novas entre seus escritos e seu vivido - , compreende-se que não seja muito adequado lê-lo no intento de dar-lhe sistema. Uma tal tática terá sua utilidade, mas receio que jamais alcance o vigor de uma estratégia; que jamais consiga dar conta do que, nesse autor, é essencial. E por isso considerei muito feliz - enquanto acompanhava, como orientador, ou deveria dizer, como leitor, o belo mestrado em Filosofia que resultou neste livro - ela tomar o partido de recusar a leitura totalizante ou sistemática, para enfrentar a vasta obra sadiana quase como uma guerrilheira, elegendo cinco temas fundamentais - duas atividades e três lugares - e retraçando o que neles é essencial.

O leitor logo verá o percurso de Eliane: principiando pela viagem (a saída de si, percurso horizontal), ela passa por uma construção que é clausura (o castelo), para assim revelar que tudo é rito, é cerimônia construída - que a própria viagem e sua estase, o castelo, são cenário. Daí que o capítulo sobre o teatro se situe a meio caminho, como que dando uma chave para o tema. E a partir daí pode Eliane montar as duas grandes encenações do discurso, os dois lugares em que se teatraliza o logos filosófico: primeiro, o banquete, ocasião em que a boca recebe alimento e exala palavras; segundo, o "boudoir", como o castelo um local, porém íntimo, fechado, e que é o lar da filosofia. Nestes dois lugares discursivos, o principal tema das falas é o prazer, o da mesa, o da cama. De um trajeto no qual recorreu à análise literária, à história das idéias e até à antropologia, Eliane pode assim culminar em alguns grandes temas filosóficos, os da ética (o Mal), da estética (a construção da obra de arte), da política (os despotismos em que se associam paixão e poder) e do conhecimento (qual é o papel do filósofo).

Talvez o que mais convenha salientar aqui, porém, são alguns pressupostos que Eliane utilizou para propor esta leitura, cuidadosa e cativante. Mais que pressupostos, trata-se talvez de opções bem conscientes. Primeiro, uma extrema atenção à imagem, à materialidade do significante. É uma perspectiva que podemos dizer oposta à da transcendência. Um autor como Sade, tão peremptório em seu materialismo, provoca alguns de seus leitores, os de vocação mais espiritual, a procurar descobrir o que está por trás das imagens, como se ele estivesse, em sua blasfêmia mesma, tentando balbuciar uma carência do espírito. Pois a leitura que Eliane efetua é, já por seu modo mesmo, antagônica a essa. O que ela ressalta num banquete, por exemplo, são os alimentos, numerosos, bons, sensuais. O próprio significado que eles tenham se deve buscar, antes de mais nada, neles enquanto significantes. Não se salta a matéria, não se passa impunemente por ela.

Segundo ponto, uma grande atenção ao elemento cênico. Não apenas porque Eliane, num capítulo, que já afirmei nevrálgico, tratará do teatro em Sade: mas porque a própria base de sua leitura está numa idéia de cenários em movimento. Tudo o que ela afirma das imagens em Sade se sustenta em sua teatralização, conceito, por sinal, admiravelmente apropriado às formas sociais do Antigo Regime. Podemos resumir a teatralização em dois elementos. O primeiro é que, se não se chega a proclamar um primado do significante sobre o significado, seguramente se exclui qualquer apagamento daquele em favor de uma suposta soberania deste segundo. Melhor dizendo: a atenção ao teatral exige igual atenção às formas. Para se usar uma distinção velha e imprecisa, mas ainda assim útil, elas são fundamentais para se conhecer o conteúdo.

Já o segundo traço da teatralização reside no movimento que ela imprime às formas. Com efeito, não se trata apenas de formas, mas de cenários ou entrechos: e o fato de estarmos diante de um movimento indica muito bem o caráter produtor, ou produtivo, que é essencial à teatralização. Dizendo de outro modo, a teatralização é tudo menos uma falsidade, e é muito mais que um entretenimento. Trata-se de um procedimento no qual extrema atenção se dá ao engate entre forma e conteúdo, significante e significado, operação e espírito. Ora, é justamente esse ponto de encontro - esse ponto de produção - que permite a Eliane mostrar como um mundo, o sadiano, se produz nestas cinco formas que analisa.

Tomemos então uma destas formas, a que abre o livro: a da viagem. Eliane parte de Sade para pensar a própria história, o tempo mesmo no qual o autor escreve - e não o contrário. Isto ela faz, antes de mais nada, testando em todas as direções o acontecimento viagem. As riquezas do significante se vão, assim, explicitando, e se iluminam umas às outras. Por exemplo: a viagem é mobilidade, definição quase acaciana, quase uma tautologia; mas disto se pode implicar que seja, também, descoberta. Ela se faz, para os franceses do século XVIII, sobretudo no rumo da Itália. E se reveste de especial sentido para Sade, uma vez ele preso. Aqui temos, pois, uma definição (abordagem filosófica), uma recordação dos itinerários (ponto de vista histórico), uma contraposição entre o autor preso e suas personagens itinerantes (viés biográfico). Torna-se possível agora, a Eliane ou a seus leitores, continuar testando essas diferenças e seus confrontos. O viés biográfico é o da compensação: quanto mais preso na realidade está o nosso autor, mais solto se lança no imaginário. O ponto de vista histórico é o do contexto: a obra se ilumina estudando-se seu entorno como um elemento que concorre para explicá-la. Já a abordagem filosófica parte de uma tautologia: viagem é movimento, portanto, na boa tradição do pensamento europeu, como Eliane recorda em alusão aos portugueses da Renascença, a vida consiste em viajar.

O essencial, todavia, está em fazer funcionarem esses - e outros - registros: em exceder, assim, os seus limites. Caso se contentasse com apenas um deles, a obra de Eliane padeceria de suas limitações: ficaria presa, por exemplo, a uma duvidosa relação da vida com a obra segundo o esquema da compensação ficcional das frustrações vividas, ou a uma explicação algo contestável do texto por seu entorno, ou contexto. A multiplicação dos pontos de vista praticada por Eliane deve então ser entendida como um modo de exceder essas limitações - não pelo recurso a uma simples justaposição de procedimentos nos quais um equilibrasse as deficiências do outro, ou a um excesso barroco de quantidades que sonhassem efetuar um salto qualitativo; mas valendo-se de um olhar que, por ser o do prisma, procura dissolver a unidade do objeto, trabalhando-o em suas várias e mesmo antagônicas potencialidades.

Ainda assim, do conjunto extraem-se resultados: não nos perdemos na dispersão. O recurso ao prisma é meio, não fim, deste livro. Por isso, termino salientando duas conclusões que aprecio particularmente no trabalho de Eliane. A primeira consiste no percurso iniciático. Aqui, a autora faz excelente uso da intersecção entre a antropologia e as religiões para, jogando com idéias correlatas aos ritos de passagem e de iniciação, trabalhar em vários níveis a noção de uma mudança. A obra de Sade multiplica pontes, abismos, claustros, ilhas - lugares quer de passagem, quer de encerramento, mas que portam, todos, o sentido de uma transformação em curso, figurada pela translação espacial, e com frequência também o sentido de uma concentração que adensa as experiências novas reveladas no texto. Mas, ao mesmo tempo que na própria obra lemos esses trajetos, sucede também em nós, leitores, alguma sorte de passagem, de iniciação. O texto de Sade, apresentado por Eliane na boa, ainda que recente, tradição de um século que deu ao marquês uma popularidade e simpatia antes desconhecidas, não mais se arrasta na repetição ou monotonia de que tanto foi acusado: torna-se o veículo de uma novidade, de uma revelação leiga.

Aqui, a segunda conclusão. Apostando no materialismo de Sade, Eliane Robert Moraes pode então libertá-lo da imagem assustadora que dele construíram os séculos XVIII e XIX. Não, é certo, para compor um marquês bem-pensante, por exemplo, o apóstolo precoce e incompreendido da liberdade sexual. Negar-lhe a identificação com o Mal não significa reduzi-lo a um casto e quem sabe castrado anjo de presépio. Mas era preciso afastar os preconceitos, sair do plano do bem e do mal, para apreender o vigor sensual de uma obra como a de Sade. Dizendo de outro modo, é a perspectiva resolutamente materialista de Eliane que abre caminho para uma leitura que fará mais justiça ao erotismo sadiano do que as leituras assustadas do passado. Para a ficção do marquês expor toda a sua sensualidade, era pois necessário esposar os ritmos de seu pensamento; sem o materialismo, que é de sua filosofia, não será legível o erotismo, que é de sua fantasia. Um repertório de alguns temas seletos assim se mostra especialmente rico para se ingressar no pensamento e na ficção de Sade. E, para terminar numa nota pessoal, minha impressão de leitor que teve o privilégio de acompanhar a escrita deste livro: raras vezes, acredito, o prazer que se tem em ler deverá tanto ao prazer que teve a autora em escrever.

Sete Praias, março de 1994.

RENATO JANINE RIBEIRO

sábado, 27 de agosto de 2011

Uma breve visão sobre Sade


(Imagem do filme " Contos proibidos do Marquês de Sade ")

" Mais apaixonado que Voltaire, mais direto que Rousseau, Sade foi o inventor de uma "crítica" que usava a blasflêmia, a anarquia e a imundície como meios de libertação."
(Jean Desbordes)

Formas e formas de pensar...


" Não foi a minha maneira de pensar que provocou a minha desgraça. Foi a maneira de pensar dos outros." (SADE)
Isto lhe diz alguma coisa?
Blanchot dirá que o pensamento de Sade mostra que " entre o homem normal que encerra o homem sádico num impasse e o sádico que faz deste impasse uma saída, é este último que conhece mais sobre a verdade e a lógica de sua situação, ao ponto de poder ajudar o homem normal a compreender a si mesmo, ajudando-o a modificar as condições de toda compreensão."

Para REFLETIR!


A curiosidade sobre o que motivou Sade a fazer o que fez ou o que dizem que ele fez é gritante, mas laconicamente deixarei posto algo para ser pensado. SADE É PRODUTO DA REPRESSÃO, e como já dizia Marcuse, " a história do homem é a história de sua repressão."

Para quê ler Sade?


Muitos já me questionaram acerca do próposito das obras de Sade. Vou-lhes responder com uma afirmativa de Georges Bataille:" Para quem quiser ia ao fundo do que significa o homem, a leitura de Sade é não apenas recomendável, mas necessária."

Sade: Um pobre diabo!


(Imagem do filme " Contos proibidos do Marquês de Sade")


Para aqueles que acham que o Marquês foi uma aberração, vale citar um breve comenatário que Otto Maria Carpeaux fez sobre o mesmo: " Em comparação com os ditadores e coronéis do século XX, é o Marquês de SADE um pobre diabo."
Não pretendo tornar a figura do Marquês em um "bom moço", mas antes de fazer qualquer julgamento acerca de algo ou alguém, eu simplesmente procuro entender o contexto no qual o sujeito estava inserido e vê-lo antes de tudo, como um humano.

Primeira parte da entrevista de Elisabeth Roudinesco ao programa Saia Justa no canal GNT!

http://www.youtube.com/watch?v=9D7DqI1U49w&NR=1

Não deixem de ver...
Elisabeth é inteligentissima e nos dá uma ótima visão sobre a perversão.

Entrevista com Elizabeth Roudinesco sobre Literatura!

http://www.youtube.com/watch?v=0Ha8rQK_6P4&feature=player_embedded#!

Acessem o link do vídeo e vejam o que ela diz sobre o seu livro " A parte obscura de nós mesmos."

A parte obscura de nós mesmos - Uma história dos perversos/ Elisabeth Roudinesco





SINOPSE

“Ler Roudinesco é uma tarefa urgente.” Catherine Clément, Le Magazine Littéraire

Príncipe dos perversos, marquês de Sade defendia uma ruptura com as leis que regem a sociedade ao divulgar em seus livros a sodomia, o incesto e o crime. Rudolf Höss, o comandante de Auschwitz, contou sem reservas como se tornou o maior chacinador de todos os tempos. Liduína de Schiedam, canonizada em 1890, por décadas impôs a seu corpo terríveis sofrimentos. Neste livro, a prestigiada historiadora e psicanalista Elisabeth Roudinesco apresenta e interpreta a história dos perversos no Ocidente através de suas figuras emblemáticas: de Barba Azul e os santos místicos na Idade Média, ao fenômeno do nazismo, dos pedófilos e terroristas nos dias de hoje.

Mostra como a perversão, definida em cada época de um modo diverso, exibe o que não cessamos de dissimular: a parte obscura de nós mesmos, a negatividade presente em cada um. E ainda reflete sobre a sua erradicação. Eliminar a perversão não seria destruir a distinção entre bem e mal que fundamenta a civilização?