sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

LITERATURA E TRANSGRESSÃO: SADE, MASOCH E BATAILLE

Renata Lopes Pedro[1]

OBS.: QUEM DESEJAR O ARTIGO COMPLETO, SOLICITAR POR EMAIL: clarilenemedeiros@hotmail.com


RESUMO: Este artigo tem o intuito de relacionar Literatura e Transgressão,analisando três
dos escritores considerados “libertinos”: Sade, Masoch e Bataille. Os romances de Sade são
romances eróticos, escritos para saciar sua excitação sexual furiosa e comunicá-la
eventualmente a outro. Sade nos apresenta seus heróis a título de exemplos, mais é preciso
notar que ele os qualifica sempre de celerados, patifes, monstros. As sinistras orgias de
Sade são pesadelos, por isso o imaginável pode ser admirado, por causa de sua intensidade
de expressão, enquanto o realizável correspondente seria reprovado. Entretanto, tendência a
tratar das sevícias sexuais, pretendendo que tanto os pacientes quanto os agentes sentissem
uma satisfação especial nelas, tomou um sentido inteiramente novo com Leopold de
Sacher-Masoch, um homem enigmático que só conseguia realizar o ato sexual com a
condição de ser açoitado e humilhado pela mulher que ele desejava. Bataille é o autor que
apresenta um sentido negro do erótico, de seus perigos de fascinação e humilhação. Em sua
obra, História do Olho, ocorre um violento processo de despersonalização, os traços que
distinguem o rosto apaga-se restando apenas os órgãos entregues à convulsão interna da
carne, operando num corpo que prescinde da mediação do espírito. Nesta obra,o tema da
pornografia não é o sexo, mas sim a morte.
PALAVRAS-CHAVE: Erotismo, Libertinos, Literatura, Sade, Transgressão.

BERNARDO CARVALHO LÊ SADE:TRAIÇÃO E HORROR EM MEDO DE SADE

Rafael Zamperetti Copetti
Doutorando em Teoria da Literatura - UFSC


Resumo: Neste ensaio são discutidos pontos de contato entre a obra do Marquês de Sade e o romance
Medo de Sade, de Bernardo Carvalho, a partir de considerações de autores como Pierre Klossowski e
Georges Bataille.
Palavras-chave: Literatura brasileira; Romance; Bernardo Carvalho.
Abstract: This essay discusses some contact sites between Sade’s work and Bernardo Carvalho’s
novel Medo de Sade from considerations by authors such as Pierre Klossowski and George Bataille.
Keywords: Brazilian’s Literature; Novel; Bernardo Carvalho.
Anuário de Literatura vol. 13, n. 2, 2008, p.
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Georges Bataille, em seu texto “Sade” (BATAILLE, s/d), sugere que o momento em
que se deu a Revolução Francesa poderia ser considerado, em princípio, pobre, se observado
do ponto de vista literário. Haveria, entretanto, segundo sua proposta, uma exceção: a obra do
marquês de Sade, escritor que permaneceu grande parte de sua vida (1740 - 1814)
encarcerado em virtude de sua obra literária e filosofia libertina. Ainda no século XX,
constata, títulos como A filosofia na alcova e Justine ou história de Juliette causavam repulsa.
Bataille evidencia também que Sade e sua obra se encontram interligados com a
Revolução Francesa, pois o sentido desta está, ainda que de forma singular, contido nos
planos do marquês. Tais projetos se relacionariam com o desejo de destruição, tanto de
objetos quanto de pessoas. O fim do pensamento clássico, isto é, da epistémê que possibilitou
a gramática geral e a história natural, diz Foucault, “coincidirá com o recuo da representação,
ou, antes, com a liberação, relativamente à representação, da linguagem, do ser vivo e da
necessidade” (FOUCAULT, 2000, p. 289).
No princípio de Sade meu próximo, Pierre Klossowski (KLOSSOWSKI, 1985)
argumenta que o ato de escrever “supõe uma generalidade à qual um caso singular reivindica
adesão e, por isso, se compreende a si mesmo no domínio dessa generalidade”
(KLOSSOWSKI, 1985, p. 16) e, ainda, que o marquês de Sade entenderia tal ato desta forma
tendo em vista que o “instrumento da generalidade”, em sua época, teria sido “a linguagem
logicamente estruturada da tradição clássica”, cuja estrutura foi restabelecida através da
comunicação a normatividade da “espécie humana nos indivíduos”, a qual, por sua vez,
garantiria “a conservação e a propagação da espécie”.
Daí que, de acordo com Klossowski, a necessidade intrínseca do ser humano de se
reproduzir e de perpetuar a espécie tenha encontrado seu agente persuasivo na linguagem,
através do estabelecimento de uma “reciprocidade de persuasão que propicia a permuta das
singularidades individuais no circuito da generalidade” (KLOSSOWSKI, 1985),
reciprocidade que ocorreria apenas “segundo o princípio de identidade ou princípio de
contradição, que faz cindir a linguagem logicamente estruturada com o princípio geral do
entendimento, ou seja, a razão universal” (KLOSSOWSKI, 1985, p. 16-17).
A partir destas observações é possível perceber a origem da noção sadiana de
monstruosidade integral, conceito que parece estar relacionado ao fato de o marquês de Sade
buscar estabelecer uma contrageneralidade que permita a ocorrência de uma troca entre casos
particulares de perversão, os quais teriam como característica a inexistência de estrutura
lógica, caso a generalidade normativa seja tomada como base de comparação. E, já que Sade
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considerava a contrageneralidade um dos elementos que possibilitam a ocorrência da
perversão, Klossowski sugere que o marquês entenda esta contrageneralidade como sendo um
dos elementos que compõe a generalidade. Isto é: o ateísmo declarado pela razão normativa
estaria destinado a mesclar a generalidade existente e a contrageneralidade (KLOSSOWSKI,
1985, p.17).
Esta opção pelo modo perverso, isto é, por uma forma que não possui um conjunto de
regras e princípios estabelecidos, seria uma maneira de apontar a razão como atéia, já que
esta, a razão, perceberia que a noção de Deus modifica de forma não lógica sua própria
autonomia. E, se o cerceamento da autonomia da razão pela noção de Deus se dá de forma
ilógica, é possível entender que o conceito de Deus é, portanto, também monstruoso e, por
conseguinte, o ponto de partida dos diversos comportamentos perversos e monstruosos.
Entretanto, Klossowski chama a atenção para uma importante crítica formulada por
Sade, ainda que de forma tácita: a crítica da razão normativa, que se daria, segundo o ensaísta,
através do questionamento da maneira pela qual a razão normativa poderia vir a absorver
aspectos que vão contra a manutenção da espécie humana, já que ela própria, a razão
normativa, não “se renova em seu próprio conceito” (KLOSSOWSKI, 1985, p. 18). Ou seja, a
intenção do marquês seria tornar o pensamento independente de “toda a razão normativa
preestabelecida”. Uma possível solução para esta questão passaria pelo ateísmo integral, o
qual efetivamente poderia dar cabo da razão antropomorfa, pois o ateísmo, caso não venha a
ser reconsiderado a partir de aspectos recusados pela razão, reforçaria as instituições baseadas
em princípios antropomorfos. Em suma, o ateísmo integral denotaria a supressão do princípio
de identidade e, conseqüentemente, o banimento físico e moral da “propriedade do eu
responsável”, levando assim à prostituição universal dos seres, a qual, por sua vez, seria um
complemento da monstruosidade integral no sentido de uma ausência de normatividade.
Klossowski ressalta também que a exigência da transgressão se oporia aos efeitos do
ateísmo, pois seria ainda possível que se desse a expropriação do eu corporal e moral “no
sentido utópico do falanstério de Fourrier, baseado no ‘jogo das paixões” (KLOSSOWSKI,
1985, p. 21). Porém, caso esta “comunização” preconizada por Fourrier ocorresse, a tensão
“necessária ao ultraje” se extinguiria levando ao fim o sadismo, a não ser que fossem
propositalmente criadas regras do “jogo” a serem burladas, pois, para que ocorra a
transgressão é necessária a existência de uma ordem, ou, isto é, de regras claras a serem
seguidas.
Ainda a respeito da questão da transgressão, Klossowski sugere que a existência de
normas faria com que se desse um “acúmulo” de energia, o que fatalmente transformaria a
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transgressão em um acontecimento necessário, pois a prostituição universal apenas “tem
sentido em função da propriedade moral do corpo individual” (KLOSSOWSKI, 1985, p. 22).
E, complementa o ensaísta, afirmando a necessidade de existência da noção de propriedade
para que a prostituição não se prive daquilo que constitui seu incentivo, o ultraje.
No que tange à monstruosidade integral, que tacitamente habitaria a generalidade em
vigor, o processo apenas descrito ocorreria de forma semelhante, pois a perversão, que seria a
“insubordinação das funções de viver”, através de seus procedimentos e, sobretudo, de sua
ação principal, a prática da sodomia, obteria importância como ato transgressivo à medida que
existissem normas estabelecidas. E, ainda, se se tomasse como correta a afirmação de que a
perversão é, de certa forma, uma característica oculta do ser humano, como sugere
Klossowski, é plausível que ela possa exercer a função de uma espécie de guia de
transgressão para aqueles ditos “normais”.
Outro ponto do ensaio de Klossowski que merece destaque diz respeito à sua
advertência acerca de possíveis leituras ingênuas da obra de Sade. Para o pensador, se a
monstruosidade integral se tornasse completa, no sentido de que houvesse apenas perversos
confessos, seria possível considerar a “meta” de Sade alcançada. Isto é; o sadismo
desapareceria pelo fato de não existir mais o monstro transgressor. (KLOSSOWSKI, 1985, p.
22).
A partir daí, pode-se extrair, seguindo o raciocínio de Klossowski, que a
monstruosidade, ao contrariar regras, se afirmaria negativamente e, também, que são as
próprias normas e instituições que criam um ambiente propício para que ocorram situações de
perversão.
Uma outra observação de Klossowski, importante para a leitura de Medo de Sade, diz
respeito ao comportamento do perverso, o qual sujeitaria “seu prazer à execução de um gesto
único” (KLOSSOWSKI, 1985, p. 25); ou seja, mesmo em um meio efetivamente desregrado,
o perverso se destacaria por uma “idéia fixa determinada”. Paradoxalmente, aponta o autor,
não haveria coisa menos livre do que o “gesto perverso”, pois este gesto visa à busca por um
detalhe. Dito de outra forma, o perverso se encontraria em uma constante procura pela
realização de um feito exclusivo, o qual, pelo fato de ser único, pode ser realizado apenas uma
vez. Ou, ainda: “a existência do perverso torna-se a perpétua expectativa do instante em que
possa executar esse gesto”, o qual é um fator essencial para que o perverso se signifique, ou
seja, “executá-lo vale para a totalidade de existir” (KLOSSOWSKI, 1985, p. 25).
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A esse respeito ele [o perverso] está aquém dos indivíduos mais grosseiros; mas enquanto
essa insubordinação de uma só função só pode se concretizar e, em conseqüência, conseguir
se individuar em seu próprio caso, ele sugere à reflexão de Sade uma possibilidade múltipla
de redistribuição das funções e, normalmente, neste sentido, para além dos indivíduos
“normalmente” constituídos, abre uma perspectiva mais vasta: a da polimorfia sensível.
Salvo se, nas condições de vida da espécie humana, ele não possa afirmar a não ser
destruindo estas condições em si mesmo: O fato de existir consagra a morte da espécie
humana em seu indivíduo. Ser se confirma como suspensão da própria vida. A perversão
corresponderia assim a uma propriedade de ser alicerçada na expropriação das funções de
viver. A expropriação do próprio corpo e de outrem será, em conseqüência, o sentido dessa
propriedade de ser (KLOSSOWSKI, 1985, p. 25).
Para Sade, o principal tipo de perversão é a sodomia, pois é ela que faz com que se
perceba similitudes entre os demais casos de perversão, o que possiblitaria a formação da
monstruosidade integral. A sodomia seria ainda, no juízo de Sade, “um gesto específico de
contrageneralidade”, pois, ao golpear “a lei de propagação da espécie”, “testemunha [...] a
morte da espécie num indivíduo”. Daí que o marquês entenda a sodomia como sendo o signo
chave da perversão, pois, é o gesto perverso que “contém [o que há] de [mais] mortal para as
normas da espécie” humana (KLOSSOWSKI, 1985, p. 27).
Neste ponto retomo Bataille e destaco sua discussão acerca da relação entre Sade e seu
objeto. O autor entende que Sade foi possuído por seu objeto, pois para o marquês seria
inconcebível a separação entre obra e objeto. Isto é: para Klossowski, o método de Sade
consistiria em apontar e reproduzir seu sonho na origem de seu devaneio. (KLOSSOWSKI
apud BATAILLE, s/d, p. 102-103).
Possivelmente foi o desenvolvimento dessa questão que levou Bataille a concluir que,
ao contrário do cristão e do romântico, que respectivamente tomariam consciência de si
próprios a partir da fé em Deus e da tomada de sua “paixão como um absoluto” (BATAILLE,
s/d, p. 103), o sádico apenas perceba a si mesmo considerando o objeto que agrava seu vigor.
E qual seria o objeto do sádico? Segundo Bataille, um outro ser humano, sobre o qual
deve necessariamente ser impresso um novo modo de ser para que se torne possível dele
lograr a angústia e o desastre esperado. Portanto, o fato de se imprimir em alguém um novo
modo de ser é, necessariamente, um ato planejado, diferença fundamental, ao que parece,
entre o sádico e, talvez assim se possa dizer, “o simples sádico”, que agiria de forma
impensada.
A discussão de Nietzsche acerca do elemento inocente que compõe a maldade é útil
para uma melhor compreensão desta questão:
A maldade não tem por objetivo o sofrimento do outro em si, mas nosso próprio prazer, em
forma de sentimento de vingança ou de uma mais forte excitação nervosa, por exemplo. Já
um simples gracejo demonstra como é prazeroso exercitar nosso poder sobre o outro e
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chegar ao agradável sentimento da superioridade. Então o imoral consiste em ter prazer a
partir do desprezar alheio? É diabólica a satisfação com o mal alheio, como quer
Schopenhauer? Na natureza obtemos prazer quebrando galhos, removendo pedras, lutando
com animais selvagens, para nos tornarmos conscientes de nossa força. Saber que o outro
sofre por nosso intermédio tornaria imoral a mesma coisa pela qual normalmente não nos
sentimos responsáveis? Se não o soubéssemos, contudo, também não teríamos prazer em
nossa própria superioridade, que justamente só se pode dar a conhecer no sofrimento alheio
[...]. Em si mesmo o prazer não é bom nem mau; de onde viria a determinação de que, para
ter prazer consigo, não se deveria suscitar o desprezar alheio? Unicamente do ponto de vista
da utilidade, ou seja, considerando as conseqüências, o desprezar eventual, quando o
prejudicado ou o Estado que o representa leva a esperar punição e vingança: apenas isso,
originalmente, pode ter fornecido o fundamento para negar a si mesmo tais ações
(NIETZSCHE, 2000, p. 78-79).
No primeiro ato de Medo de Sade (CARVALHO, 2000) – o romance de Bernardo
Carvalho é dividido em dois atos –, o barão de LaChafoi encontra-se em um local que
presume ser Charenton, o hospício em que o marquês de Sade esteve internado entre 1803 e
1814, ano de sua morte, e onde costumava encenar peças teatrais com os demais internos. No
interior de uma cela, que supunha completamente escura, já que não era capaz de enxergar
ninguém, o barão dialoga com uma voz, a qual imagina pertencer ao marquês. À esta voz
LaChafoi narra, em uma espécie de prestação de contas à seu ídolo, os acontecimentos que o
levaram até lá – afinal de contas, para o barão libertino aquela voz pertencia a Sade, seu
mestre.
Sucintamente é possível dizer que o barão procura respostas junto a seu suposto
mestre para o que aconteceu de impróprio durante uma “noite de devassidão e excessos”
(CARVALHO, 2000, p.13) no castelo de Lagrange, quando os participantes – sua esposa, seu
primo, o conde de Suz e sua bela criada Martine – ingeriram uma fórmula afrodisíaca à base
de cantáridas trituradas, a qual supostamente foi prescrita pelo próprio marquês; o barão busca
respostas tendo em vista que após despertar desta noite libertina percebeu que um dos
participantes da orgia foi assassinado e, pior, além do fato de ele não conhecer qual dos três
outros participantes foi vitimado, ele próprio, então já encarcerado, estava sendo acusado de
tal crime. Ou seja, ao que parece, talvez esta voz funcione como uma espécie de regra que
regularia a ordem e o desenvolvimento de uma dada comunidade, no caso a dos libertinos e,
por conseguinte, a vida do barão.
Entretanto, é apenas no segundo e último ato do romance de Carvalho, no qual o leitor
é trazido para a contemporaneidade, que se percebe que aquela voz que em um primeiro
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momento regularia uma comunidade de libertinos impõe normas, na verdade, a um outro
corpo social, aquele ao qual pertencem os que são considerados loucos.
É então a partir da narrativa do “negro de branco ao branco de branco” (CARVALHO,
2000, p. 67) que tem início o entrelaçamento dos dois atos do romance. É atravées desta
narrativa, a do “negro de branco”, o qual poderia muito bem ter como profissão a
enfermagem, que se fica sabendo que o interno do segundo ato, um cidadão francês, seguidor
da filosofia libertina do barão de LaChafoi, que encomendou, na cidade do Rio de Janeiro, a
morte de sua esposa, também cidadã francesa, acredita ser o próprio barão.
Em suma, de acordo com o narrador, o essencial seria conhecer o caráter paradoxal do
crime e não quem foi seu autor, já que o o assassinato da mulher fora praticado para que se
tornasse possível a execução de um outro crime, que, em virtude das circunstâncias, não foi e
não poderá ser empreendido.
No entanto, creio ser relevante destacar um fragmento da caracterização do casal
envolvido no crime, fragmento este que traz à tona as regras do jogo em que os dois
personagens se envolveram.
Era um casal curioso. [...] Casaram-se numa capelinha no alto de uma colina, a coisa mais
singela, no sul da França, no vilarejo onde ele tinha nascido e onde no início do século XIX,
ao que parece, um barão organizava bacanais inspirado no marquês de Sade. Um escritor
libertino cuja filosofia máxima era a traição. Seis meses depois de casados descobriram que
ela não podia ter filhos. Perceberam que o amor não resiste ao tempo, o amor acaba, e
fizeram um pacto explícito que, de hábito, nos casamentos em geral, por ficar implícito,
termina por destruí-los. Resolveram que o melhor era estabelecer uma relação baseada na
traição e no horror. O horror no lugar do amor. Um casamento baseado num jogo de
horrores, porque, como ele mesmo vive repetindo em suas crises, o horror não morre, ao
contrário do amor. Só o horror pode manter um casamento, sob o princípio da traição,
segundo a filosofia do tal barão libertino. Cada um dos cônjuges prega uma peça no outro,
alternada e sucessivamente. O que aprenderam a chamar, numa brincadeira reservada entre
os dois, de “medo de Sade”. Uma referência ao célebre marquês, é lógico, que ao que tudo
indica tinha inspirado o barão no início do século XIX em sua filosofia tão peculiar. [...]
Quem tiver mais medo, perde. Esse era o jogo. [...] Só que o negócio durou pouco. Porque
até a traição tem suas regras, e ele trapaceou. Quis adiantar a morte, matar a mulher antes
que ela o matasse. Teve medo. E nesse jogo quem tem medo perde. Para você pode parecer
um paradoxo, e para mim também, mas ao morrer ela ganhou. Ao morrer, ela ganhou porque
deixou ele apavorado (CARVALHO, 2000, p. 68-69).
Conforme foi apontado anteriormente, Sade sugere a instituição de uma
contrageneralidade que possibilite uma troca entre casos específicos de perversão, cuja
particularidade seria a inexistência de estrutura lógica.
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A partir desta constatação é possível tecer algumas considerações a respeito da
legitimidade de uma relação conjugal baseada na traição e no horror, como é o caso daquela
mantida entre os personagens de Carvalho.
Em um primeiro momento, uma relação nestes moldes pode ser encarada como
legítima, caso se concorde com o raciocínio de Nietzsche quando sugere que seria a coerção
operada por um aparelho de estado, por exemplo, que impediria que se dessem
comportamentos fora de uma generalidade já estabelecida.
Por outro lado, se se admite que um comportamento similar seja legítimo, e se,
hipoteticamente, deixasse de existir todo e qualquer tipo de coerção em relação ao fato de que
se obtenha prazer a partir do sofrimento alheio, seria instaurada a princípio uma espécie de
desregramento total, que, por sua vez, impediria que alguém se impusesse, ou, ainda,
obtivesse prazer através do sofrimento alheio e, por conseguinte, que demonstrasse sua
superioridade sobre um outro ser.
No entanto, mesmo em uma situação como aquela reclamada por Sade, em que
haveria a ausência total de normas, seriam reinstituídas regras a serem burladas, pois, ao que
parece, para que haja a transgressão é imprescindível que se estabeleçam regras, mesmo que
estas sejam tácitas e operem sobre comunidades restritas ou ainda um número ínfimo de
pessoas.
A este respeito, é novamente possível tomar como exemplo o casal do romance de
Carvalho, que, ao manterem uma relação baseada na traição e no horror, a qual, para um olhar
externo pareceria completamente ilógica, no sentido de que não estaria baseada em regra
alguma, possuem, na verdade, entre eles, apenas, seus próprios códigos e normas, através dos
quais obtêm prazer a partir do sofrimento e do pavor do outro com o intuito de se manterem
unidos.
É possível que o próprio marquês de Sade tivesse consciência da necessidade de
existência de empecilhos como a linguagem logicamente estruturada das normas e das
instituições para que se desse a monstruosidade integral, entendida aqui como a ausência total
de normas, pois é a partir apenas do conceito de norma instituída que se percebe o que é
monstruoso, ou, em outras palavras, o que é ilógico.
Daí que a lógica do casal do romance de Carvalho pareça ilógica para quem olha de
fora, ainda que para eles, na busca incessante do prazer e da manutenção da relação, exista
uma lógica apenas por eles conhecida.
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Esta busca peculiar e incessante pelo gozo por parte dos personagens, baseada em
códigos próprios, os quais aparentemente desconsiderariam as coerções apontadas por
Nietzsche, parece manter alguma relação com a discussão a respeito do fato de Sade ter sido,
de acordo com Bataille, possuído por seu objeto, pois, ao que parece, a única forma através da
qual os personagens tomam consciência de si próprios é a obtenção do prazer a partir do
horror ao qual seu objeto, no caso um dos cônjuges, é submetido.
Para finalizar, é preciso destacar que a busca incessante da reiteração do horror, que no
entanto seria único, ou ainda, a perseguição de uma “idéia fixa”, como por exemplo a
suposição do marido em relação à frase proferida por sua esposa, obsessão que o levou a
perder o jogo, poderia ser encarada como aquilo que tornaria a existência dos personagens “a
perpétua expectativa do instante em que possa executar esse gesto” (KLOSSOWSKI, 1985, p.
25).
Referências
BATAILLE, Georges. A literatura e o mal. Trad. Sueli Bastos. Porto Alegre: L&PM, s/d.
CARVALHO, Bernardo. Medo de Sade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Trad. Salma Tannus Muchail. São Paulo:
Martins Fontes, 2000.
KLOSSOWSKI, Pierre. Sade meu próximo. Trad. Armando Ribeiro. São Paulo: Brasiliense,
1985.
NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano – Um livro para espíritos livres. Trad.,
notas e posfácio: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
SÁ, Nelson. Bernardo Carvalho vai ao teatro com Sade. Disponível em
Acesso em: 30/07/03.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Mitos sádicos - Uma série de histórias foi contada sobre o nobre francês - mas poucas são verdadeiras

Por Giovana Sanchez



Muitas histórias nebulosas surgiram em torno de Sade. Com uma vida amorosa repleta de traições e festinhas, várias prisões e uma literatura pornográfica, ele serviu freqüentemente de bode expiatório para muitos crimes praticados por libertinos ricos e impunes de sua época. O próprio marquês confirmou, em uma das cartas que escreveu da prisão, em 1781, à esposa: “Sou um libertino, eu confesso; eu concebi tudo o que se pode conceber nesse gênero, mas seguramente não fiz tudo o que concebi e certamente nunca farei. Sou um libertino, mas certamente não sou nenhum criminoso nem assassino”. Vários crimes foram atribuídos a Sade, mas nunca provados. Eis alguns deles:
• Enviar um exemplar de seu romance Juliette (que contava a vida de uma moça que participa de orgias em um convento e relata cerca de 50 mil crimes) a Napoleão, que teria ateado fogo ao livro.
• Ser encontrado em uma sala com um homem morto colocado em um imenso pote de vidro com álcool. Ele teria matado o sujeito e dissecado o corpo.
• Em 1834, a polícia teria arrombado sua casa e o encontrado deitado no chão, bêbado, junto a seu criado, ambos estendidos sobre poças de sangue e vinho.
• Ser preso em flagrante quando tentava queimar uma mulher viva e nua em sua casa.
• Ter provocado, por intermédio de seus livros cheios de violência e crueldade, assassinatos – como o cometido por um suposto leitor, que teria matado uma jovem que cuidava do marquês no sanatório.

MICHAEL FOUCAULT E SUA IMPORTÂNCIA PARA A HISTÓRIA DA SEXUALIDADE HUMANA

Paul-Michel Foucault nasceu em 15 de outubro de 1926. Filho de Paul Foucault, cirurgião e professor de anatomia em Poitiers, e Anna Malapert, Michel pertencia a uma família onde a medicina era tradição, pois tanto o avô paterno quanto o materno eram cirurgiões, mas Michel traçou o próprio caminho. Desde cedo demonstrou interesse pela história influenciado por um professor que teve ainda na escola, padre De Montsabert. Foucault era uma pessoa curiosa, o que fazia com que buscasse por conta própria suas leituras. Seu interesse pela filosofia não tardou a aparecer, aprofundando seus estudos com entusiasmo. Como pano de fundo, Foucault vivia os tormentos da Segunda Guerra Mundial.
Foucault e o pai tinham uma relação conturbada, o que não se repetia com a mãe, com quem mantinha forte vínculo. Mudou-se para Paris em 1945, e retornava sempre que podia para visitar a mãe em Poitiers. Enquanto preparava-se para provas, concorrendo a vagas como aluno na École Normale da rue d'Ulm, Foucault entrou em contato com Jean Hyppolite, professor que lhe ensinou Hegel e reforçou seu encanto e sua vocação para a filosofia, marcando-o profundamente. Em 1946, iniciou seus estudos na École Normale da rue d'Ulm. Foucault trazia com ele a característica de ser uma pessoa solitária e fechada, o que foi tornando-se cada vez mais forte, pois as relações e a competitividade por parte dos alunos desta escola fizeram com que ele recuasse ainda mais do contato social. Tornou-se uma pessoa agressiva e irônica, características estas que se mantiveram por toda sua vida. Em 1948 Foucault tentou suicídio, o que acabou levando-o a um tratamento psiquiátrico. Este impulso, retornou outras vezes em sua vida. Segundo o psiquiatra que o acompanhou, esta atitude estava ligada à dificuldades frente a sua homossexualidade, que começava a anunciar-se. Esta experiência colocou-o pela primeira vez em contato com a psiquiatria, psicologia e psicanálise, o que marcou profundamente a sua obra. Foi leitor de Platão, Hegel, Kant, Marx, Nietzsche, Husserl, Heidegger, Freud, Bachelard, Lacan, etc. Foucault aprofundou-se nos estudos de Kant. influenciado também por Nietzsche, por quem apaixonou-se, e por Bachelard. Leu também autores como Kafka, Faulkner, Gide, Genet, Sade, René Char, etc. Este filósofo tornou-se grande amigo de Louis Althusser, que o levou a aderir ao partido comunista. Por toda a vida esteve às voltas com a política. Licenciado em filosofia pela Sorbone em 1948, em 1949 licenciou-se em psicologia. No ano de 1952 cursou o Instituto de Psychologie e obteve diploma de Psicologia Patológica. No mesmo ano tornou-se assistente na Universidade de Lille. Foucault lecionou psicologia e filosofia em diversas universidades, em países como: Alemanha, Suécia, Tunísia, EUA, etc. Trabalhou durante muito tempo como psicólogo em hospitais psiquiátricos e prisões. Escreveu para diversos jornais. Viajou o mundo apresentando conferências. Em 1955 mudou-se para Suécia, onde conheceu Dumézil. Este contato foi importante para a evolução do pensamento de Foucault, pela idéia de estrutura que Dumézil desenvolveu. Conviveu com pessoas importantes da intelectualidade de sua época, como Jean-Paul Sartre, Jean Genet, Canguilhem, Gilles Deleuze, Merlau-Ponty, Henri Ey, Lacan, Binswanger, etc. Em 1961 defendeu tese de Doutorado intitulada: "Loucura e Desrazão". Esteve no Brasil em 1965 para conferência à convite de Gerard Lebrun, seu aluno na rue d'Ulm em 1954. Foucault faleceu no dia 25 de junho de 1984, em plena produção intelectual, o que fez com que sua morte fosse muito sentida. A causa da morte foi em função de complicadores provocados pela AIDS, Foucault tem septicemia, o que provoca sua morte por supuração cerebral no dia 25. Quando morreu, Michel Foucault era o pensador mais famoso do mundo. Ainda que fosse algo menos popular do que havia conseguido ser Jean-Paul Sartre depois da Segunda Guerra Mundial, desde os fins dos anos 60 sua obra ocupou o lugar central.
Michel Foucault morreu aos 57 anos: tinha AIDS em uma época em que a doença era rapidamente mortal. O vírus havia sido descoberto, apenas dois anos antes que o filósofo morresse, por Luc Montagnier, um pesquisador que foi discípulo do Dr. Paul Foucault, pai de Michel.
Nesses últimos trabalhos, (A história da sexualidade II – O uso dos prazeres) e (A história da sexualidade III – O cuidado de si) de 1984, Foucault provoca mais uma inversão e retorna à Grécia clássica e a Roma dos primeiros séculos do cristianismo para analisar o modo como surgiram os primeiros discursos sobre a constituição do sujeito. Essa virada é considerada por vários intérpretes de seu trabalho como uma virada para a busca de uma ética que sempre faltou em seus escritos. Já há esse tempo Foucault era explorado como um mentor da revolução sexual e emancipador de consciências. Papéis que de fato nunca assumira. Mesmo porque, não poderia em razão de seu compromisso com a filosofia de inspiração nietzscheana.
Há grandes discussões à respeito de Foucault representar ou não a corrente estruturalista. O próprio autor em sua obra, "O nascimento da clínica", usa pela primeira vez o termo estrutura, demonstrando neste texto a intenção de realizar uma análise estrutural. Em 1969, em seu novo texto "Arqueologia do saber", Foucault revela que a análise estrutural não o auxiliou a tratar da problemática que pretendia no texto "O nascimento da clínica". Ao contrário, acredita que a análise estrutural acabou por nublar a problemática em questão.
O homem, para este filósofo, ocupa um papel importante, uma vez que é sujeito e objeto de conhecimento. Considera o homem enquanto resultado de uma produção de sentido, de uma prática discursiva e de intervenções de poder. Foucault discute o homem, enquanto sujeito e objeto do conhecimento, através de três procedimentos em domínios diferentes: a arqueologia, a genealogia e a ética. A ética, para Foucault, é a possibilidade de apontar o sujeito que constitui à si próprio como sujeito das práticas sociais. É o momento para refletir o motivo pelo qual o homem moderno constitui critérios de um modo de subjetivação em que tenha espaço a liberdade. Encontra-se este método principalmente em "O uso dos prazeres" e "O cuidado de si". Esta elaboração foi feita nos últimos meses da vida de Foucault, momento em que parecia surgir para este filósofo a necessidade de pensar sobre ele mesmo.
Vigiar e punir funcionava ainda como um protesto contra as filosofias do sujeito, que atribuem esse mecanismo de conhecimento e poder a uma intencionalidade oculta das ações humanas, o que lhe gerou uma acusação de tecnocratismo por colocar a culpa dessa subjugação do homem em mecanismos anônimos contra os quais não se podia lutar. Para entender bem de que lado Foucault estava nessa denúncia que seguramente havia iniciado com Adorno e Horkheimer de modo bastante semelhante é preciso ler Vigiar e punir acompanhando Para uma genealogia da moral de Friedrich Nietzsche. È possível dessa forma compreender que não existe no percurso de Foucault, sobretudo quando ele chega a Vigiar e punir, um princípio de finalidade, onde o conjunto pode estar assegurado por regras de coerência interna que possam servir de fundamento para uma nova política ou uma nova ética, e como essa atitude se insere no ativismo intelectual.
Nesses últimos trabalhos, (A história da sexualidade II – O uso dos prazeres) e (A história da sexualidade III – O cuidado de si) de 1984, Foucault provoca mais uma inversão e retorna à Grécia clássica e a Roma dos primeiros séculos do cristianismo para analisar o modo como surgiram os primeiros discursos sobre a constituição do sujeito. Essa virada é considerada por vários intérpretes de seu trabalho como uma virada para a busca de uma ética que sempre faltou em seus escritos. Já há esse tempo Foucault era explorado como um mentor da revolução sexual e emancipador de consciências. Papéis que de fato nunca assumira. Mesmo porque não poderia, em razão de seu compromisso com a filosofia de inspiração nietzscheana.
Para seus críticos essa postura neutra serviu como o melhor dos argumentos contra ele. Em 1983 Jürgen Habermas dedicara enorme quantidade de páginas de seu Discurso filosófico da modernidade a Foucault com o objetivo explícito de tirá-lo do caminho, condenando-o a repetidor da velha tradição tiranizante das filosofias do sujeito, onde incluía seus mestres Adorno e Horkheimer. Habermas simplificava: depois de estudar tantos domínios de saber, de mapeá-los e de descobrir que não há saída para esse relativismo, por que lutar então? A perguntar Why fight? resume as preocupações normativas típicas da filosofia liberal feita nos Estados Unidos e Inglaterra, e foi dirigida a Foucault pela primeira vez pela norte-americana Nancy Fraser, uma radical defensora dos direitos civis nos Estados Unidos e que influenciou bastante essa abordagem da obra de Foucault na América do Norte, onde ele passava boa parte dos anos em fins da década de 70, especialmente na Califórnia.
A notícia sobre certa doença que atacava especialmente grupos de risco como os homossexuais abalava a Europa e os Estados Unidos no início da década de 80. Foucault se manifestou contra o quanto pôde, porque insistia que era mais uma forma de marcar mais um grupo de “anormais” com os sinais da degenerescência. O então “câncer dos gays” mal tinha sido diagnosticado quando Foucault se viu com suspeita de ser portador do HIV. No dia 25 de junho Foucault morre em decorrência de uma septicemia, provocada pela AIDS. Uma de suas exigências antes de morrer era de que nenhum de seus textos que estavam sendo preparados fosse publicado após sua morte. O quarto volume da História da Sexualidade estava praticamente pronto e nunca chegou às livrarias. Deveria se chamar As confissões da carne.
Dentro ou fora das fronteiras sociais e políticas hoje cada vez mais diluídas Foucault mostrou que os mecanismos de exclusão e inclusão eram os mesmos quando seus resultados demonstravam a mesma violência, fosse qual fosse o discurso de justificativa ou justificabilidade. Se transformar esses mecanismos parece difícil, abandonar a obra de Foucault para problematizar e compreender melhor a complexidade atual parece ainda mais complicado.

1. O ESTRUTURALISMO E O PENSAMENTO FILOSÓFICO DE MICHEL FOUCAULT

O estruturalismo consiste, essencialmente, numa reação contra o existencialismo. A originalidade do existencialismo está em colocar em evidência o valor do indivíduo, a sua independência, a sua liberdade, a sua autonomia em relação ao Estado, à sociedade, ao universal,
ao geral, às leis e às estruturas.
São numerosos os autores deste movimento. Assinalemos os mais notáveis: Claude Lévi-Strauss, Michel Foucault, Jacques Lacan, entre outros. Foram os antropólogos culturais que se apropriaram do método estruturalista e o aplicaram ao estudo do homem. E dos antropólogos que se dedicaram ao estudo da cultura dos povos primitivos, o primeiro a efetuar esta transposição foi Claude Lévi-Strauss, posteriormente seguido pelo filósofo Michel Foucault
Há também um uso filosófico do conceito de estrutura, tratando-se precisamente das elaborações de pensadores como Foucault, Lacan e Claude Lévi-strauss, que, voltando-se contra o existencialismo, o subjetivismo idealista, o humanismo personalista, o historicismo e o empirismo factualista, deram origem a um movimento de pensamento ou a uma atitude, apresentando soluções bastante diferenciadas das propostas pelas filosofias acima citadas para urgentes problemas filosóficos relativos ao sujeito humano ou "eu" e ao desenvolvimento da história humana e o seu sentido. Em poucas palavras, os estruturalistas pretenderam inverter a direção em que caminhava o saber sobre o homem, decidindo destronar o sujeito (o eu, a consciência ou o espírito) e suas celebradas capacidades de liberdade, autodeterminação e criatividade em favor de "estruturas" profundas e inconscientes, onipresentes e onideterminantes.






OBRAS

"Doença mental e Psicologia" (1954);
"História da Loucura" (1961);
"Raymond Roussel" ( 1963 );
"O nascimento da clínica" (1963 );
"As palavras e as coisas"(1966);
"A Arqueologia do saber" (1969);
"A ordem do discurso" (1970 - aula inaugural do College de France);
"Vigiar e Punir" (1977);
"A vontade de saber - História da sexualidade I" (1976);
"O uso dos prazeres - História da sexualidade II" (1984);
"O cuidado de si - História da sexualidade III" (1984).


CONCLUSÃO


Poucos filósofos do cenário contemporâneo percorreram com tamanha genialidade tantas áreas do saber como Michel Foucault. Brilhante em uma geração de homens brilhantes, o filósofo sobressaiu-se desde o início de sua produção intelectual. Acreditavam os que o conheceram que era ele "a promessa de sua geração". Não estavam enganados: o autor não se deteve diante das tamanhas dificuldades de sua própria existência, aproveitando cada uma delas como base para seus estudos, pesquisas e busca do conhecimento.
O estilo foucaultiano é repleto de multinarrações essenciais para o desenvolvimento de uma escritura que abunda em metáforas, que apela a transformar muitas de suas frases em epigramas, quase em versos, e seus parágrafos em aforismos.
Tais conjecturas fazem de Foucault um escritor, um pensador, um estudioso, que se transformou num dos filósofos que mais profundamente refletiu sobre a história, sobre a sociedade e o homem como objeto deste contexto. Qualificado como detentor de uma potencialidade elevadamente reveladora, Foucault propiciou-nos um legado inestimável e atemporal, consagrado como o poeta do pensamento e inigualável filósofo de nossos tempos.
Foucault é considerado um filosofo de fronteira. Viveu uma homossexualidade não declarada!

A História da Sexualidade

A sociedade vive desde o século XVIII, com a ascensão da burguesia, uma fase de repressão sexual. Nessa fase, o sexo se reduz a sua função reprodutora e o casal procriador passa a ser o modelo. O que sobra vira anormal - é expulso, negado e reduzido ao silêncio. Mas a sociedade burguesa - hipócrita - vê-se forçada a algumas concessões. Ela restringe as sexualidades ilegítimas a lugares onde possam dar lucros, como nas casas de prostituição e hospitais psiquiátricos. A justificativa para isso seria que, em uma época em que a força de trabalho é muito explorada, as energias não podem ser dissipadas nos prazeres. Certo?

Segundo Michel Foucault, filósofo francês, está quase tudo errado. A hipótese descrita acima é chamada por ele de hipótese repressiva e vem sendo aceita quase como uma verdade absoluta. Mas Foucault descontrói esse pensamento e formula uma nova e desconcertante hipótese, mostrando a seus leitores que ainda que certas explicações funcionem, elas não podem ser encaradas como as únicas verdadeiras, pois, segundo ele, a verdade nada mais é do que uma mentira que não pode contestada em um determinado momento.

De certa forma, a hipótese repressiva não pode ser contestada, já que serve bem à sociedade atual. Foucault afirma que, para nós, é gratificante formular em termos de repressão as relações de sexo e poder por uma série de motivos. Primeiramente, porque, se o sexo é reprimido, o simples fato de falar dele e de sua repressão ganham um ar de transgressão. Segundo, porque, aceitando-se a hipótese repressiva, pode-se vincular revolução e prazer, pode-se falar num período em que tudo vai ser bom: o da liberação sexual. Sexo, revelação da verdade, inversão da lei do mundo são, hoje, coisas ligadas entre si. Finalmente, insiste-se na hipótese repressiva porque aí tudo que se diz sobre o sexo ganha valor mercantil. Por exemplo, certas pessoas (psicólogos) são pagas para ouvirem falar da vida sexual dos outros.

Esse enunciado da hipótese repressiva vem acompanhado de uma forma de pregação: a afirmação de uma sexualidade reprimida é acompanhada de um discurso destinado a dizer a verdade sobre o sexo. Foucault, no livro História da Sexualidade I, interroga o caso de uma sociedade que há mais de um século se "fustiga ruidosamente por sua hipocrisia, fala prolixamente de seu próprio silêncio, obstina-se em detalhar o que não se diz e promete-se liberar das leis que a fazem funcionar". A questão básica não é "por que somos reprimidos, mas por que dizemos, com tanta paixão, com tanto rancor contra nosso passado mais próximo, contra nosso presente e contra nós mesmos que somos reprimidos?".

A partir daí, o autor nos propõe uma série de questionamentos: a repressão sexual é mesmo uma evidência histórica, como tanto se afirma por aí? Serão os meios de que se utiliza o poder mesmo repressivos? Será que não se utilizam de formas mais ardilosas e discretas de poder? A crítica feita à repressão quer mesmo acabar com esta ou faz parte da mesma rede histórica que denuncia? Existe mesmo uma ruptura histórica entre Idade da repressão e a análise crítica da repressão? Não seria para incitar a falar sobre ele que o sexo é exibido como segredo que é indispensável desencavar?

Não é que Foucault diga que o sexo não vem sendo reprimido; afirma, sim, que essa interdição não é o elemento fundamental e constituinte a partir do qual se pode escrever a história do sexo a partir da Idade Moderna. Ele coloca a hipótese repressiva numa economia geral dos discursos sobre sexo a partir do século XVII. Mostra que todos esses elementos negativos ligados ao sexo (proibição, repressão etc.) têm uma função local e tática numa colocação discursiva, numa técnica de poder, numa vontade de saber.

A hipótese de Foucault é que há, a partir do século XVIII, uma proliferação de discursos sobre sexo. Diz ele que foi o próprio poder que incitou essa proliferação de discursos, através de instituições como a Igreja, a escola, a família, o consultório médico. Essas instituições não visavam proibir ou reduzir a prática sexual. Visavam, sim, o controle do indivíduo e da população.

A explosão discursiva sobre sexo de que trata Foucault veio acompanhada de uma depuração do vocabulário sobre sexo autorizado, assim como de uma definição de onde e de quando podia se falar dele. Regiões de silêncio - ou, pelo menos, de discrição - foram estabelecidas entre pais e filhos, educadores e alunos, patrões e serviçais etc.

A Igreja Católica, com a Contra-Reforma, deu início ao processo de incitação dos discursos sobre sexo ao estimular o aumento das confissões ao padre e também a si mesmo. As "insinuações da carne" têm de ser ditas em detalhes, incluindo os pensamentos sobre sexo. O bom cristão deve procurar fazer de todo o seu desejo um discurso. Ainda que tenha havido uma interdição de certas palavras, esta é apenas um dispositivo secundário em relação a essa grande sujeição, é apenas uma maneira de tornar o discurso sobre sexo moralmente aceitável e tecnicamente útil.

Ainda no século XVIII e principalmente no século XIX, houve uma dispersão dos focos de discurso sobre o sexo, que antes eram restritos à Igreja. Houve uma explosão de discursos sobre sexo, que tomaram forma nas diversas disciplinas, além de se diversificarem na forma também. A medicina, a psiquiatria, a justiça penal, a demografia, a crítica política também passam a se preocupar com o sexo. Analisa-se, contabiliza-se, classifica-se, especifica-se a prática sexual, através de pesquisas quantitativas ou causais.

Esses discurso são, realmente, moralistas, mas isso não é o essencial. O essencial é que eles revelam a necessidade reconhecida de superar esse moralismo. Supõe-se que se deve falar de sexo, mas não apenas como uma coisa que se deve simplesmente coordenar ou tolerar, mas gerir, inserir em sistemas de utilidade, regular para o bem de todos, fazer funcionar segundo um padrão ótimo. O sexo não se julga apenas, mas administra-se . Portanto, regula-se o sexo não pela proibição, mas por meio de discursos úteis e públicos, visando fortalecer e aumentar a potência do Estado (que não significa aqui estritamente República, mas também cada um dos membros que o compõe).

Um dos exemplos práticos dos motivos para se regular o sexo foi o surgimento da população como problema econômico e político, sendo necessário analisar a taxa de natalidade, a idade do casamento, a precocidade e a freqüência das relações sexuais, a maneira de torná-las fecundas ou estéreis e assim por diante. Pela primeira vez, a fortuna e o futuro da sociedade eram ligados à maneira como cada pessoa usava o seu sexo. O aumento dos discursos sobre sexo pode, então, ter visado produzir uma sexualidade economicamente útil.

Da mesma forma em que o sexo passou a ser um problema para a demografia, também passou a despertar as atenções de pedagogos e psiquiatras. Na pedagogia, há a elaboração de um discurso acerca do sexo das crianças, enquanto, na psiquiatria, estabelece-se o conjunto das perversões sexuais. Ao se assinalar os perigos, despertam-se as atenções em torno do sexo. Irradiam-se discursos, intensificando a consciência de um perigo incessante - o que incita cada vez mais o falar sobre sexo.

O exame médico, a investigação psiquiátrica, o relatório pedagógico, o controle familiar, que aparentemente visam apenas vigiar e reprimir essas sexualidades periféricas, funcionam, na verdade, como mecanismos de dupla incitação: prazer e poder. "Prazer em exercer um poder que questiona, fiscaliza, espreita, espia, investiga, apalpa, revela; prazer de escapar a esse poder. Poder que se deixa invadir pelo prazer que persegue - poder que se afirma no prazer de mostrar-se, de escandalizar, de resistir." Prazer e poder se reforçam.

Pode-se afirmar, então, que um novo prazer surgiu: o de contar e o de ouvir. É a obrigação da confissão, que se difundiu tão amplamente, que já está tão profundamente incorporada a nós, que não a percebemos mais como efeito de um poder que nos coage. A confissão se diversificou e tomou novas formas: interrogatórios, consultas, narrativas autobiográficas. O dever de dizer tudo e o poder de interrogar sobre tudo se justificam no princípio de que a conduta sexual é capaz de provocar as conseqüências mais variadas, ao longo de toda a existência. O sexo aparece como uma superfície de repercussão para outras doenças. Mas pressupõe-se que a verdade cura quando dita a tempo e quando dita a quem é devido.

Michel Foucault constrói, portanto, uma nova hipótese acerca da sexualidade humana, segundo a qual esta não deve ser concebida como um dado da natureza que o poder tenta reprimir. Deve, sim, ser encarada como produto do encadeamento da estimulação dos corpos, da intensificação dos prazeres, da incitação ao discurso, da formação dos conhecimentos, do reforço dos controles e das resistências. As sexualidades são, assim, socialmente construídas. Assim como a hipótese repressiva, é uma explicação que funciona. Cada um que aceite a verdade que mais lhe convém. Ou invente novas verdades.

A CONTRIBUIÇÃO DE SADE AO FEMINISMO

É fascinante notar que as escritoras contemporâneas, entre elas várias feministas fervorosas, têm reações bem contrárias diante das idéias de Sade. Algumas repudiam com veemência a visão que o escritor tinha das mulheres, tachando-o de monstro e pornógrafo libidinoso; outras, talvez surpreendentemente, elogiam sua obra, que segundo elas aborda a liberdade sexual de ambos os sexos. De acordo com estas últimas, Sade se recusa a classificar as mulheres apenas de máquinas reprodutoras e lhes dá a liberdade de se tornarem seres sexuais. Para Camille Paglia, acadêmica e feminista americana, Sade é um grande intelectual, e seu livro Justine, uma obra-prima. Por outro lado, Janine Chasseguet-Smirgel, uma das mais destacadas psicanalistas francesas que estudam as perversões, afirma que na obra de Sade as mulheres são retratadas como objeto de total desprezo. Para ela, o sexo feminino, além de tido como objeto de repulsa, é comparado pejorativamente com ânus, o qual, chamado de o “outro templo”, é bastante idealizado pelo autor por ter a função de expelir “produtos finais” (ou seja, as fezes).

Man Ray, um dos maiores representantes do surrealismo, mostra em fotografia de 1933 sua aversão ao catolicismo e seu desprezo pela idéia de que o sexo é exclusivo da procriação, invertendo um crucifixo e sobrepondo-o à divisão das nádegas de um homem. Homenagem às idéias de Sade, Ray intitulou a foto “Monumento a D.A.F. Sade” e manifestou com ela que Sade desaprovava o uso do sexo para reprodução e sua preferência pela prática sodomia. Deve-se lembrar que na época de Sade a sodomia era crime da França.

Janine Chasseguet-Smirgel usou a “situação sadiana” para definir a perversão como um universo em que reina enorme confusão e cuja a característica principal é a intenção de suprimir a diferença entre os sexos. Todos são iguais; não há homens nem mulheres. Incesto não é mais tabu, e a analidade chega ao auge como o mais intenso dos encontros libidinais. Acaba-se com a feminilidade das mulheres; não há espaço para a genitália feminina. Com jeito, a psicanalista nos leva a Os 120 Dias de Sodoma – escrito em 1785 com ênfase em construções e lugares claustrofóbicos e circulares, passagens estreitas como esfíncteres – para concluir que o “prazer ligado à transgressão é sustentado pela fantasia de ter reduzido o objeto a excremento, rompendo as barreiras que separam mãe e filho, filha e pai, irmão e irmã, as zonas erógenas umas das outras” e assim por diante, numa tentativa de criar um mundo novo pela extinção das leias naturais. A realidade não existe mais; criou-se um mundo ilusório, com prioridade para a importância da incerteza e dos códigos de lei ou normas.

Angela Carter, famosa escritora britânica, feminista autêntica e pensadora original, desafia todas as outras feministas a ver as obras de Sade sob nova luz. Em seu livro The Sadeian Woman (1979), ela lança a hipótese de que o escritor francês tratava a sexualidade como realidade política e por isso foi confinado. Em suas obras, escreve Angela, Sade revela a sociedade e as relações sociais extremadas existentes no Antigo Regime francês. Os libertinos daquele tempo eram grandes aristocratas, alguns eram proprietários rurais e outros estavam ligados à igreja ou às atividades bancárias. Trocando em miúdos, seus libertinos dominavam e mantinham uma sociedade bem diferente da deles, na qual suas instituições haviam sido deturpadas e transformadas na personificação de perversões. Segundo a escritora britânica, Sade considera os fatos da sexualidade feminina não um dilema moral, mas uma realidade política; suas heroínas, as libertinas, não têm vida interior nem introspecção, e seus únicos modelos de comportamento são libertinos que aceitam a danação – entendendo-se por isso o exílio do mundo como necessidade de vida. Em tom bastante provocativo, Angela Carter afirma: [...] Sade declara-se inequivocamente favorável ao direito da mulher de fornicar [...]. Ele estimula as mulheres a fornicar tanto quanto puderem, de modo que, fortalecidas por sua enorme energia sexual, até então represada, elas sejam capazes de penetrar na história e, assim, mudá-la.

Do livreto Sadomasoquismo, de Estela Welldon.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Analise do filme: Contos proibidos do Marques de Sade


Analise do filme: Contos proibidos do Marquês de Sade

OBS.:  analise enviada por um dos seguidores do blogger...é bom contar com a ajuda de voces sempre! 


Contos Proibidos do Marquês de Sade
Sinopse: Os limites de moralidade da sociedade sempre foram questionados, através da história. Em pleno século 18, em meio à Revolução Francesa, um dos mais perigosos dissidentes foi, sem dúvida, o Marquês de Sade, que originou o termo sadismo. Sade era uma pessoa contraditória, às vezes brilhante e sensível, outras, egoísta e demoníaco. Foi tão escandaloso que continua a chocar a todos no século 21 e seu legado ainda promove debates sobre o que fazer com aqueles que exploram alegremente os mais sinistros tabus. O verdadeiro Marquês de Sade nasceu em 1740 em Paris e viveu durante um dos períodos mais tumultuados da história da França. Ficou conhecido pela palavra cuja criação foi inspirada nele: o sadismo, referindo-se aos prazeres sexuais derivados da dor. Mas, Sade foi muito mais do que um experimentador sexual. Foi um escritor que ficou preso durante 27 anos pelo crime de escrever sobre o lado mais negro do ser humano. Em 1772, foi sentenciado à morte por crimes sexuais e escapou abertamente. Mais tarde, tornou-se um revolucionário e, novamente, escapou da guilhotina. Publicou romances eróticos, foi banido da administração de Napoleão e passou os últimos anos de sua vida num asilo. Marquês de Sade transformou-se num mito.

Analise do filme
O filme “Contos proibidos do Marquês de Sade”, mostra um escritor que recria a realidade, ou seja, transforma em ficção a vida de toda uma sociedade. Uma sociedade que esta “escondida” por medo de reprovações por parte da igreja, e por esse motivo reprime qualquer tipo de desejo, sentimentos mais ousados.
“O período em questão é propício a muitos questionamentos por se tratar da encruzilhada entre os períodos moderno e contemporâneo da história e, por enfocar um personagem e um tema tão polêmicos quanto o Marquês de S ade e o moralismo da sociedade francesa (de base cristã ocidental).”
http://www.adorocinema.com/filmes/contos-proibidos/contos-proibidos.htm

Os contos do Marquês são as vontades não só dele, mas também de muitas pessoas, que por medo de recriminações (como já dito) priva-se dos seus desejos. É bem mais fácil cometer “loucuras”, influenciado por um livro escrito por um louco e maníaco sexual, era assim que Sade era visto, do que por vontade própria. A culpa vai ser sempre de quem escreve.
Para o Marquês, a sua escrita, seus contos, eram sua liberdade, ele sentia prazer em escrever, em imaginar cada história, mas também em saber que pessoas iriam ler seus contos as escondidas, e que iam de alguma maneira ser influenciadas, despertadas por suas palavras. O Marquês sabia que dentro de uma sociedade reprimida havia desejos, e ele queria instigá-los, queria que o povo colocasse para fora o que realmente sentia, sem ter pudor, vergonha alguma de demonstrar seus sentimentos. Ele escrevia e sabia que aqueles desejos colocados no papel não eram somente dele, mas de toda uma sociedade hipócrita.

Elementos da narrativa:
Enredo:O enredo do filme gira em torno da censura empregada ao Marquês à sua literatura. A partir do momento que ele é preso no hospício várias narrativas se desenrolam, mas o clímax acontece quando ele perde todas as alternativas convencionais de escrita e a vida de todos a sua volta fica em perigo.

O ambiente:
O ambiente central do filme é o hospício onde o Marquês é internado.

O tempo:
O filme se passa durante a Revolução Francesa. Século XVIII.

Personagens:
*Marquês de Sade
*A lavadeira (Madeleine)
*Abade (Coulmier)
* O médico (Royer-Collard)
*Internos do hospício
*Esposa do médico
*Esposa do Marquês
*Mãe de Madeleine (cega)
*O cavaleiro

O filme é uma narrativa ficcional e verossímil.

Temática: AMOR
O filme mostra vários tipos de amor. O amor do Marquês pela literatura, do Marquês pela lavadeira, o amor de Abade pela lavadeira, o amor da lavadeira pelo Abade, da lavadeira pelo cavaleiro, da lavadeira pelos livros inclusive os do Marquês.
O Marquês ama tanto suas palavras, que abre mão de sua mulher, de sua vida, da sua integridade física para escrever. Quando voltamos o nosso olhar para o Marquês podemos verificar que nele existe a função de autor que se sobrepõe a ele mesmo, nem mesmo a manutenção da própria vida é mais importante para ele. A sua vontade de escrever contrapõe qualquer limite para tentar burlar os sistemas externos que tentam silenciá-lo, usando vinho, sangue e até suas fezes, para escrever, quando privado do papel e de penas, ele declara: "Minha escrita é involuntária, como os batimentos do meu coração. Minha ereção constante!". O Marquês vê a escrita como uma forma de libertação pessoal. É ou não é um ato de amor?
O amor do Marquês pela lavadeira, é um amor misturado ao desejo, já que para ele amor e desejo são praticamente a mesma coisa. Ele a amava principalmente porque ela gostava dos seus contos, dava importância para o que ele escrevia o que muita gente não fazia.
O amor de Abade pela lavadeira é o chamado amor puro e ao mesmo tempo proibido, por ele ser um sacerdote. Ele a admirava por ser trabalhadora, e ter um ar de pureza no olhar, mas também leva a perguntar se talvez ele a amasse somente por desejo, desejo de conhecer o que até então era desconhecido para ele, e como Madeleine era uma mulher que vivia mais próxima a ele, ele a amava de alguma maneira.
O amor da lavadeira por Ab ade, é um amor também puro, e protetor, ela via em Abade alguém que a protegia, que queria o seu bem. Sem citar também na beleza que Abade possuía.
O amor da lavadeira pelo cavaleiro, era o amor fugitivo, a vontade dela era subir no cavalo e sair com ele pelo mundo. Um estranho que tinha o ar de liberdade. Era isso que ela queria, sair daquele sanatório, daquela vidinha de sempre, por isso ela gostava dos contos do Marquês, porque os contos quebravam as regras.O amor da lavadeira pelos livros do Marquês, como já disse anteriormente, ela queria liberdade, algo que quebrasse as regras, e era isso que os contos proporcionavam a ela, aventura,o secreto,o proibido. Ela era uma moça simples mas, sabia muito bem a diferença entre o certo e o errado, e o Marquês não consegue mudar isso. Ela admira e respeita o Marquês, um homem muito inteligente, mas não está apaixonada por ele.


quinta-feira, 17 de junho de 2010

Estratagema do amor - Sade

De todos os desvios da natureza, o que fez mais pensar, o que pareceu mais estranho a estes meio-filósofos que querem analisar tudo sem nada compreender, dizia um dia a uma das suas melhores amigas a Menina de Villebranche de quem vamos ter ocasião de nos ocuparmos em seguida, é este gosto estranho que mulheres duma certa construção, ou dum certo temperamento, conceberam por pessoas do seu sexo. Embora muito antes da imortal Safo e depois dela não tenha havido uma só região do universo nem uma única cidade sem nos oferecer mulheres com este capricho e embora, perante provas de tal força, parecesse mais razoável acusar a natureza de singularidade do que estas mulheres de crime contra a natureza, nunca todavia se deixou de vituperá-las, e sem o ascendente imperioso que sempre teve o nosso sexo, quem sabe se algum Cujas, algum Bartole, algum Luís IX não teriam imaginado fazer contra estas sensíveis e infelizes criaturas leis iníquas, como as que se lembraram de promulgar contra os homens que, construídos no mesmo género de singularidade, e por tão boas razões sem dúvida, julgaram poder bastar-se a si próprios, e imaginaram que a mistura dos sexos, muito útil à propagação, podia muito bem não revestir esta mesma importância para os prazeres. Deus nos livre de tomar qualquer partido a tal respeito... não é, minha cara?, continuava a bela Augustine de Villebranche atirando a esta amiga beijos que pareciam, contudo, um tanto suspeitos, mas em vez de iniquidades, em vez de desprezo, em vez de sarcasmos, todas armas perfeitamente embotadas nos nossos dias, não seria infinitamente mais simples, numa acção tão totalmente indiferente à sociedade, tão igual a Deus, e talvez mais útil do que se acredita na natureza, deixar cada um agir a seu gosto... Que se pode recear desta depravação?... Aos olhos de todo o ser verdadeiramente sensato, parecerá que ela pode evitar maiores, mas nunca se provará que possa conduzir a perigosas... Ah, justos céus, receia-se que os caprichos destes indivíduos de um ou outro sexo façam acabar o mundo, que ponham em leilão a preciosa espécie humana, e que o seu pretenso crime a aniquile, por não proceder à sua multiplicação? Reflicta-se um pouco sobre isto e ver-se-á que todas estas perdas quiméricas são inteiramente indiferentes à natureza, que não só não as condena, mas nos prova através de milhares de exemplos que as quer e as deseja; ah, se estas perdas a irritassem, tolerá-las-ia em milhares de casos, permitiria, se a progenitura lhe fosse tão essencial, que uma mulher só pudesse servir para isso durante um terço da sua vida e que ao sair das suas mãos a metade dos seres que ela produz tivessem o gosto contrário a essa progenitura no entanto exigida por ela? Digamos melhor, permite que as espécies se multipliquem, mas não o exige, e bem segura de que terá sempre mais indivíduos do que necessita, está longe de contrariar as inclinações dos que não têm a propagação como uso e que se repugnam de conformar-se a ela. Ah! deixemos agir esta boa mãe, convençamo-nos bem de que os seus recursos são imensos, de que nada que façamos a ultraja e de que o crime que atentaria contra as suas leis nunca estará nas nossas mãos. A Menina Augustine de Villebranche de que acabamos de ver uma parte da lógica, senhora das suas acções com a idade de vinte anos, e podendo dispor de trinta mil libras de rendas, decidira-se por gosto a nunca se casar; o seu nascimento era bom, sem ser ilustre, era filha única dum homem que enriquecera nas índias e morrera sem jamais a ter podido convencer ao casamento. Não o devemos dissimular, muito entrava desta espécie de capricho, de que Augustine acabava de fazer a apologia, na repugnância que testemunhava pelo himeneu; seja conselho, seja educação, seja disposição de órgão ou calor de sangue (nascera em Madras), seja inspiração da natureza, seja tudo o que se quiser enfim, a Menina de Villebranche detestava os homens, e totalmente entregue ao que os ouvidos castos entenderão pela palavra safismo, só encontrava volúpia com o seu sexo e só se satisfazia com as graças do desprezo que sentia pelo Amor. Augustine era uma verdadeira perda para os homens; alta, feita para ser pintada, os mais belos cabelos castanhos, o nariz um pouco aquilino, os dentes soberbos, e olhos duma expressão, duma vivacidade... a pele duma delicadeza, duma brancura, todo o conjunto numa palavra duma espécie de volúpia tão atraente... que era bem certo que vendo-se tão feita para dar amor e tão determinada a não o receber, podia muito naturalmente escapar a muitos homens um número infinito de sarcasmos contra um gosto, aliás muito simples, mas que privando, apesar disso, os altares de Safo duma das criaturas do universo mais bem feitas para os servir, devia necessariamente indispor os sectários dos templos de Vénus. A Menina de Villebranche ria satisfeita de todas estas censuras, de todos estes maus propósitos, e nem por isso se entregava menos aos seus caprichos.

OBS.: Quem desejar o texto por inteiro, solicite por email: clarilenemedeiros@hotmail.com

Contos Libertinos - Marquês de Sade

Entre a cidade de Menerbe, no condado de Avinhão, e a de Apt, em Provença, há um


pequeno convento de carmelitas isolado, denominado Saint-Hilaire, assentado no cimo de

uma montanha onde até mesmo às cabras é difícil o pasto; esse pequeno sítio é

aproximadamente como a cloaca de todas as comunidades vizinhas aos carmelitas; ali, cada

uma delas relega o que a desonra, de onde não é difícil inferir quão puro deve ser o grupo de

pessoas que freqüenta essa casa. Bêbados, devassos, sodomitas, jogadores; são esses, mais

ou menos, os nobres integrantes desse grupo, reclusos que, nesse asilo escandaloso, o quanto

podem ofertam a Deus almas que o mundo rejeita. Perto dali, um ou dois castelos e o burgo

de Menerbe, o qual se acha apenas a uma légua de Saint-Hilaire - eis todo o mundo desses

bons religiosos que, malgrado sua batina e condição, estão, entretanto, longe de encontrar

abertas todas as portas de quantos estão à sua volta.

Havia muito o padre Gabriel, um dos santos desse eremitério, cobiçava certa mulher de

Menerbe, cujo marido, um rematado corno, chamava-se Rodin. A mulher dele era uma

moreninha, de vinte e oito anos, olhar leviano e nádegas roliças, a qual parecia constituir em

todos os aspectos lauto banquete para um monge. No que tange ao sr. Rodin, este era homem

bom, aumentando o seu patrimônio sem dizer nada a ninguém: havia sido negociante de

panos, magistrado, e era, pois, o que se poderia chamar um burguês honesto; contudo, não

muito seguro das virtudes de sua cara-metade, era ele sagaz o bastante para saber que o

verdadeiro modo de se opor às enormes protuberâncias que ornam a cabeça de um marido é

dar mostras de não desconfiar de os estar usando; estudara para tornar-se padre, falava latim

como Cícero, e jogava bem amiúde o jogo de damas com o padre Gabriel que, cortejador

astuto e amável, sabia que é preciso adular um pouco o marido de cuja mulher se deseja

possuir. Era um verdadeiro modelo dos filhos de Elias, esse padre Gabriel: dir-se-ia que toda

a raça humana podia tranqüilamente contar com ele para multiplicar-se; um legítimo fazedor

de filhos, espadaúdo, cintura de uma alna* , rosto perverso e trigueiro, sobrancelhas como as

de Júpiter, tendo seis pés de altura e aquilo que é a característica principal de um carmelita,

feito, conforme se diz, segundo os moldes dos mais belos jumentos da província. A que

mulher um libertino assim não haveria de agradar soberbamente? Desse modo, esse homem

se prestava de maneira extraordinária aos propósitos da sra. Rodin, que estava muito longe de

encontrar tão sublimes qualidades no bom senhor que os pais lhe haviam dado por esposo.

Conforme já dissemos, o sr. Rodin parecia fazer vistas grossas a tudo, sem ser, por isso,

menos ciumento, nada dizendo, mas ficando por ali, e fazendo isso nas diversas vezes em que

o queriam bem longe. Entretanto, a ocasião era boa. A ingênua Rodin simplesmente havia

dito a seu amante que apenas aguardava o momento para corresponder aos desejos que lhe

pareciam fortes demais para que continuasse a opor-lhes resistência, e padre Gabriel, por seu

turno, fizera com que a sra. Rodin percebesse que ele estava pronto a satisfazê-la... Além

disso, num breve momento em que Rodin fora obrigado a sair , Gabriel mostrara à sua

encantadora amante uma dessas coisas que fazem com que uma mulher se decida, por mais

que hesite... só faltava, portanto, a ocasião.

Num dia em que Rodin saiu para almoçar com seu amigo de Saint-Hilaire, com a idéia

de o convidar para uma caçada, e depois de ter esvaziado algumas garrafas de vinho de

Lanerte, Gabriel imaginou encontrar na circunstância o instante propício à realização dos

seus desejos.

* Antiga medida de comprimento de três palmos. (N. dos T.) - Oh, por Deus, senhor magistrado, - diz o monge ao amigo - como estou contente de vos

ver hoje! Não poderíeis ter vindo num momento mais oportuno do que este; ando às voltas

com um caso da maior importância, no qual haveríeis de ser a mim de serventia sem par.

- Do que se trata, padre?

- Conheceis Renoult, de nossa cidade.

- Renoult, o chapeleiro.

- Precisamente.

- E então?

- Pois bem, esse patife me deve cem écus* , e acabo de saber que ele se acha às portas da

falência; talvez agora, enquanto vos falo, ele já tenha abandonado o Condado... preciso

muitíssimo correr até lá, mas não posso fazê-lo.

- O que vos impede?

- Minha missa, por Deus! A missa que devo celebrar; antes a missa fosse para o diabo, e

os cem écus voltassem para o meu bolso.

- Não compreendo: não vos podem fazer um favor?

- Oh, na verdade sim, um favor! Somos três aqui; se não celebrarmos todos os dias três

missas, o superior, que nunca as celebra, nos denunciaria à Roma; mas existe um meio de me

ajudardes, meu caro; vede se podeis fazê-lo; só depende de vós.

- Por Deus! De bom grado! Do que se trata?

- Estou sozinho aqui com o sacristão; as duas primeiras missas foram celebradas, nossos

monges já saíram, ninguém suspeitará do ardil; os fiéis serão poucos, alguns camponeses, e

quando muito, talvez, essa senhorazinha tão devota que mora no castelo de... a meia légua

daqui; criatura angélica que, à força da austeridade, julga poder reparar todas as estroinices

do marido; creio que me dissestes que estudastes para ser padre.

- Certamente.

- Pois bem, deveis ter aprendido a rezar a missa.

- Faço-o como um arcebispo.

- Ó meu caro e bom amigo! - prossegue Gabriel lançando-se ao pescoço de Rodin - são

dez horas agora; por Deus, vesti meu hábito, esperai soar a décima primeira hora; então

celebrai a missa, suplico-vos; nosso irmão sacristão é um bom diabo, e nunca nos trairá;

àqueles que julgarem não me reconhecer, dir-lhes-emos que é um novo monge, quanto aos

outros, os deixaremos em erro; correrei ao encontro de Renoult, esse velhaco, darei cabo dele

ou recuperarei meu dinheiro, estando de volta em duas horas. O senhor me aguardará,

ordenará que grelhem os linguados, preparem os ovos e busquem o vinho; na volta,

almoçaremos, e a caça... sim, meu amigo, a caça creio que há de ser boa dessa vez: segundo

se disse, viu-se pelas redondezas um animal de chifres, por Deus! Quero que o agarremos,

ainda que tenhamos de nos defender de vinte processos do senhor da região!

- Vosso plano é bom - diz Rodin - e, para vos fazer um favor, não há, decerto, nada que

eu não faça; contudo, não haveria pecado nisso?

- Quanto a pecados, meu amigo, nada direi; haveria algum, talvez, em executar-se mal a

coisa; porém, ao fazer isso sem que se esteja investido de poderes para tanto, tudo o que

dissentes e nada são a mesma coisa. Acreditai em mim; sou casuísta, não há em tal conduta o

que se possa chamar pecado venial.

- Mas seria preciso repetir a liturgia?

- E como não? Essas palavras são virtuosas apenas em nossa boca, mas também esta é

virtuosa em nós... reparai, meu amigo, que se eu pronunciasse tais palavras deitado em cima

de vossa mulher, ainda assim eu havia de metamorfosear em deus o templo onde sacrificais...

Não, não, meu caro; só nós possuímos a virtude da transubstanciação; pronunciaríeis vinte

mil vezes as palavras, e nunca faríeis descer algo dos céus; ademais, bem amiúde conosco a

cerimônia fracassa por completo; e, aqui, é a fé que faz tudo; com um pouco de fé

transportaríamos montanhas, vós sabeis, Jesus Cristo o disse, mas quem não tem fé nada faz...

* Antiga moeda francesa. (N. dos T.) eu, por exemplo, se nas vezes em que realizo a cerimônia penso mais nas moças ou nas

mulheres da assembléia do que no diabo dessa folha de pão que revolvo em meus dedos,

acreditais que faço algo acontecer? Seria mais fácil eu crer no Alcorão que enfiar isso na

minha cabeça. Vossa missa será, portanto, quase tão boa quanto a minha; assim, meu caro,

agi sem escrúpulo, e, sobretudo, tende coragem.

- Pelos céus, - diz Rodin - é que tenho uma fome devoradora! Ainda faltam duas horas

para o almoço!


OBS.: Quem desejar a continuaçao do conto, solicite por email: clarilenemedeiros@hotmail.com

MORAES, Eliane Robert. Lições de Sade: ensaios sobre a imaginação libertina. São Paulo, Iluminuras, 2006

Josiane Orvatich 1



Resumo

Eliane Robert Moraes é crítica literária e professora titular de Estética e Literatura da PUC-SP e do Centro Universitário Senac-SP, publicou, entre outros livros, Sade – A felicidade libertina e O corpo impossível – A decomposição da figura humana: de Lautréamont a Bataille. Seu mais recente ensaio sobre o imaginário erótico na literatura vem, com a elegância e profundidade constantes de sua obra, reunir quase vinte anos de pesquisas sobre o Marquês de Sade, priorizando a imaginação e a fantasia de sua “ficção indomável”.

Diversos textos compõem suas Lições de Sade que, não por acaso, começam e terminam com o tema das relações entre o Marquês e seus leitores. Mais que perguntar-se sobre o que Sade nos ensinaria, ou ainda, que lições teríamos de autor tão incorreto, Eliane percorre a fundo a relação do autor com os textos, iniciando por sua particular paixão pela leitura e pelos livros. O Marquês, ávido leitor, é preciso destacar como nos recomenda Eliane, ainda divertia-se com as cifras que inventava para as cartas que escrevia de dentro das prisões por onde passou.

Mais que prevenir-se contra seus possíveis inimigos, o Marquês desejava embrenhar-se num mundo de números e códigos, cujos sinais a serem decifrados o levavam ao mundo particular de sua imaginação. A relação com os textos será, nestes ensaios, privilegiada sobre qualquer tentativa de categorizar psicologicamente ou sociologizar sua obra.

Dois pontos devem ser destacados como chaves de leitura propostas pela autora: o favorecimento do mundo da imaginação em Sade – afastando-se de leituras facilitadoras que teriam pré-concebidos conceitos sobre o Marquês, como, por exemplo, o sadismo; e, ao debruçar-se sobre o universo deste faminto e guloso autor-leitor que foi Sade, investigar a existência de um leitor ideal desejado pelo Marquês, capaz de mergulhar em sua imaginação impossível e extrair dela o que a ele mais importava: uma filosofia lúbrica, em que o corpo não fosse separado das idéias, e em que o homem não fosse cindido. Este homem inteiro que
não nega suas paixões, mas serve-se delas como com quem consulta um cardápio – o próprio cardápio dos 120 dias, do qual podemos escolher o que mais nos apetece – é seu leitor ideal, o filósofo.

O filósofo capaz de dizer tudo, ou ainda, que parte de uma “filosofia que deva dizer tudo”, é convidado por Sade à cena para que sejam libertinos, afirma Eliane contrapondo-se à leitura de Simone de Beauvoir que aponta a desconfortável e rebaixada posição das vítimas.

O filósofo libertino e sua visão ousada, ou de “alma ousada”, somente ele seria capaz de ter o privilégio de ser seu leitor, adentrando, como sugere Eliane ao citar Annie Le Brun, o castelo de Silling – protótipo do universo sadiano – para ali desequilibrar-se infinitamente.

Neste desequilíbrio da violência erótica ao qual somos atirados ao ler Sade é que devemos permanecer para que a própria literatura não se torne por demais inofensiva. Eliane abre seu livro de ensaios tentando identificar este possível leitor ideal de Sade e encerra com artigo sobre o papel da literatura e seus efeitos sobre os leitores. A leitura é, portanto, ponto de partida e chegada das reflexões acerca do Marquês, desde sua própria condição de leitor assíduo até nós, seus leitores. Questão fundamental para se entender o lugar que sua literatura ocupou até então, do ostracismo e censura ao endeusamento urrealista.

Partindo da necessidade de certa identificação autor-leitor, ambos os filósofos de almas ousadas, Eliane debruça-se sobre a obra de Sade privilegiando o acesso ao seu texto pela via da imaginação e fantasia como espaços criados do devaneio. Investigando os laços de Sade com seu tempo, confrontará seus escritos aos do roman noir, febre gótica dos fins do século XVIII, aproximará a leitura fascinada dos surrealistas e rejeitará a interpretação foucaultiana que, segundo Eliane, enclausura os textos de Sade, aprisionando-o a seu tempo, como fato cultural datado. Mais próxima de sua visão sobre a imaginação sadiana estariam Barthes, Blanchot e Bataille que interpretam o claustro real do libertino à luz de uma liberdade que daí brota, afastando-se de qualquer condição social ou freio moral.

Todas estas tarefas esboçadas acima recebem no livro uma ordem, ou antes, uma divisão que nos possibilita uma maior proximidade com as idéias do Marquês e nos permite olhar mais de perto estas questões.

O livro está organizado em três partes, a primeira, Interpretações, teria como objeto central, segundo a própria autora, percorrer a obra de Sade e algumas questões de sua biografia que construam “seu notável domínio da fantasia sem o qual a libertinagem sadiana ficaria privada de sentido”. A segunda parte, Contexto, apresenta-nos um percurso histórico que contextualiza a obra do autor e o “gênero do deboche”, relacionando-os à libertinagem setecentista. A última parte do volume, intitulada Repercussões, discute a recepção da obra de Sade desde sua época até os dias de hoje.

Encontramos na primeira parte do livro, as Interpretações, uma investigação teórica acerca do Marquês que justifica sua exigência de que seria “preciso muita filosofia para me compreender...”. E é a partir desta concepção filosófica de um autor-leitor erudito que Eliane interpreta as implicações de sua filosofia lúbrica. Filosofia que ameaça nossa humanidade e que, portanto, de início provoca repulsa, segundo Barthes, mas que exige coragem para tomar o lugar sugerido por Sade, o de libertinos. É neste momento que Eliane discorda de Simone de Beauvoir por afirmar ser difícil compartilhar de um pensamento que deseja nossa morte e sujeição. Eliane defende o convite feito por Sade a almas ousadas, plenas de muita filosofia, para permitir-se aprofundar neste universo desconhecido da imaginação e da violência erótica.

Este universo tão temido iniciou-se como texto pela obra Dialogue entre um prête et um moribond, escrito em 1782 na prisão de Vincennes. Nele Sade já apresenta temas caros a toda sua filosofia, o ateísmo e o materialismo. Transformando em alcova lúbrica uma câmara mortuária, afirma Eliane, Sade estréia na literatura sem nenhuma timidez de principiante. Em sintonia com o espírito anti-religioso do fim do século XVIII, Sade por meio de seu personagem moribundo, defende o materialismo e a inexistência de Deus até o fim, este morrendo como viveu. A autora cita a Carta sobre os cegos de Diderot, do mesmo período, em que o matemático, personagem da carta, do mesmo modo argumenta sobre a morte de Deus, sem temer a própria morte, inserindo Sade neste movimento que culmina com o iluminismo.

O diferencial do texto sadiano, ainda que mergulhado neste espírito da época, é trazer a novidade da experiência, o que implica em pelo menos duas características de sua filosofia: o status da experiência alcança o status do pensamento, ou seja, “tanto a corrupção do corpo por meio das idéias quanto a corrupção das idéias por meio do corpo”, o que leva o padre a ceder à orgia no fim do conto, confirmando a teia que se forma entre ateísmo, afirmação do corpo e desamparo humano. A segunda implicação reside neste desamparo que se supera pelos prazeres do corpo e não por sua mortificação. A relação teoria-prática, prazeres soberanos-materialismo (“hoje homem, amanhã verme”) permeia toda a obra de Sade, levando-nos imediatamente a pensar em sua outra estréia nada tímida, agora no romance, Os 120 dias de Sodoma, cujas bases filosóficas estarão alicerçadas no excesso dos prazeres, vinculados a este princípio materialista capaz de “perpetuar o homem no universo”. Ou ainda podemos pensar em A filosofia na alcova, cuja volúpia descrita reforça a idéia de unidade corpo e alma, exploração dos prazeres até suas “derradeiras potencialidades” ou no “desregramento dos sentidos” como única forma de imortalidade da matéria, como esclarece Eliane.

Diante de toda essa filosofia lúbrica, como haver espaço para o amor, ápice da individualidade do desejo, como descreveu Barthes em Fragmentos de um discurso amoroso? Para responder a esta questão, Eliane investiga um outro Sade que, talvez, seja o mesmo Sade, sempre ligado aos vícios, mas que nos apresenta agora Os crimes do amor. Mesmo aqueles que cuidam para dissociar Sade do sadismo, afirma Eliane, sabem que a radicalidade de sua obra está em aliar erotismo e crueldade.

Que Sade é este, então, que nos traz textos sem descrições obscenas ou de suplícios, ou ainda sem discursos que justifiquem o crime? Momento de concordar com Simone de Beauvoir, Eliane a cita: “não é pela crueldade que se realiza o erotismo de Sade; é pela literatura”. Mais que “apologista do crime” ou “filósofo do mal”, resgata-se aqui o homem de letras que Sade sempre afirmou ser, completa a autora. Neste contexto, Eliane percorre a escrita de Sade para inseri-lo numa tradição literária que vai desde o gênero novela, bastante comum a partir da segunda metade do século XVII e adotado por Sade em muitos momentos, passando por seu diálogo com o roman noir e sua atmosfera sombria até sua relação com as narrativas de As mil e uma noites.

A complexidade das referências literárias e sua tradição, encontradas nos textos de Sade, remetem uma vez mais à erudição do autor e nos coloca diante de sua habilidade como escritor. Este é o ponto em que insiste Eliane para que possamos desvendar o possível mistério desses crimes do amor. Como escritor disposto a desvendar o homem tal como é “o escritor se permite excursionar com liberdade por regiões interditadas ao filósofo”. O homem de letras e o escritor se impõem ao filósofo, e aqui, para além de sua filosofia do mal, Sade escreve sobre o homem diante de suas maiores fraquezas, o amor e a religião, este o sentido de seus Crimes, menos cruéis fisicamente, mas nem por isso com “dor menos pungente”.

Talvez fosse interessante nos ater um pouco mais nesse mergulho da tradição literária em Sade no que diz respeito ao roman noir. Em vários momentos Eliane aponta a relevância dos laços de Sade com este movimento, além de contextualizar historicamente os textos do autor, preocupação sempre presente nos ensaios da autora. Cabe observar, ainda uma vez, que sua contextualização de Sade, tanto em relação ao “gênero do deboche” e da libertinagem, quanto em relação aos movimentos literários nunca se aproximam da leitura foucaultiana que aprisiona Sade em seu tempo, interpretando-o, como afirma a autora,  o homem reduzido ao silêncio” e ao confinamento, expressão do grande enclausuramento de sua época. Sua contextualização sempre privilegia a leitura da imaginação, tendo a literatura como lugar do ilimitado, de “um outro mundo” que não passe necessariamente por uma rede de poder que tudo absorve. A ficção do impossível, escrita pelo Marquês, não deve prestar contas a ninguém em seu mundo imaginário, conclui Eliane.

O roman noir teria sua certidão de nascimento com o livro O castelo de Otranto, escrito em 1765, por Sir Horace Walpole, inicialmente publicado sob pseudônimo e afirmado como manuscrito medieval italiano. Seu conteúdo seria o que hoje chamaríamos de clássico e até caricato romance de terror, tendo como cenário o castelo hostil e solitário, de corredores imensos, quartos frios, escadas em caracol, subterrâneos ocultos, esqueletos e barulhos de chaves, tempestades e portas rangendo e cujos personagens consistiam em uma bela e inocente heroína, perseguida pelo vilão e salva pelo herói.

Eiane narra as características destes romances seguindo de perto as descrições feitas por Howard Phillips Lovecraft para inserir em meio ao triunfo da razão iluminista, centro solar e metáfora da luz da época, esse gênero que surge extremamente popular em meio à Revolução Francesa. Também chamado de genre sombre, genre anglais, gênero gótico ou simplesmente o conto de terror, alcançou grande sucesso junto ao público, popularizando outros autores, muitos anônimos, e outros como Ann Radcliff, Mathew Gregory Lewis, Charles Maturin e ainda Bram Stocker como gótico tardio.

Estabelecendo o “mito noturno” do imaginário, como afirma Annie Le Brun citada por Eliane, o roman noir é reflexão sobre a violência instaurada em meio à evolução e capaz de dar voz às individualidades constrangidas e acuadas diante da política da época. Sade aparece aqui, continua a autora, para transbordar “e levar ao extremo” este mito noturno que aprova a violência individual, mas não deixa de ser político na medida em que recusa o homicídio constitucional generalizado da Revolução. Jean Fabre irá afirmar que havia “sadismo” aflorando por todos os lados, só lhes faltava mesmo um Sade. Eliane irá completar considerando que esta literatura veio revelar o lado obscuro da razão revolucionária e iluminista.

Ainda concernente ao roman noir, em sua extrema popularidade coincidente com um mercado editorial que se consolidava pelo gênero folhetinesco, as acusações de plágio eram inúmeras, tendo o próprio Marquês recorrido a ela, reivindicando sua originalidade. Para além das controvérsias da cópia – já que o próprio Walpole afirmou ter plagiado Shakespeare, e a partir daí vários autores escreviam sobre o mesmo mote, inclusive Sade – Eliane vem reforçar a idéia de um imaginário noturno da época, mais que plágio, um “sonho coletivo”, uma atmosfera onírica que tanto agradou aos surrealistas. Surrealistas estes responsáveis pela divinização do Marquês depois de anos de censura e ostracismo. E isto já diz respeito às Repercussões descritas por Eliane.

Entre as mais famosas repercussões do “enigma Sade” está a dos surrealistas. Fizeram de Sade praticamente um antecipador do movimento, levando André Breton a dizer que “Sade é surrealista no sadismo”.

A leitura surrealista de Sade, afirma Eliane, paira sobre questões como a onipotência do desejo, o imaginário erótico e o vínculo entre erotismo e liberdade. Eliane adverte, entretanto, que, mesmo os surrealistas tendo sido em grande parte responsáveis pela saída de Sade do ostracismo, outros leitores importantes já haviam revelado seu gosto por Sade, como Flaubert, Stendhal, Balzac, Chateaubriand e Lamartine, por exemplo.

Ainda assim, a “divinização” do Marquês veio mesmo com o século XX pelas mãos de Guillaume Apollinaire, em 1909, ao publicar escritos e uma biografia de Sade. A partir daí Sade ganhou lugar de honra na modernidade. Tornou-se referência para Artaud, Klossowski, Magritte, Salvador Dali, André Masson, Bataille, Michel Leiris, Robert Desnos, Octavio Paz, entre muitos outros. Ganhou pelo menos outras três biografias, de Maurice Heine, Gilbert Lély e Jean-Jacques Pauvert, este respondendo a um processo na justiça francesa na época em que publicou a obra completa do autor. Bataille afirmou que, se foi possível ao homem penetrar na consciência do significado da transgressão, foi porque Sade nos preparou o caminho e, com isso, abriu-nos ao mais assustador: “aquilo que mais violentamente nos revolta está em nós mesmos”.

Eliane investiga os temas abertos pelos estudos de Sade e trazidos à luz pelos surrealistas perpassando a questão do materialismo, com tônica acentuada na rejeição do primado do homem como referência, acentuando as modificações da matéria e as metamorfoses que desfazem a figura humana para darem lugar a formas monstruosas e ameaçadoras.

Imagens do mal, fascínio angustiante são alguns dos elementos que sobressaem na leitura do Marquês, tornando-se meio de subversão.


Apartir destas leituras e do próprio julgamento de Pauvert, Eliane encerra seus ensaios refletindo sobre a suposta inocência ou culpabilidade da literatura, como já havíamos enunciado no início deste texto. Ela se pergunta, afinal, “que tipo de subversão esse tipo de literatura (...) propõe para quem lê?” Ou ainda, que tipo de pensamento parte de transgressões fundamentais do homem, como incesto, tortura e assassinato?

Enfim, se interroga sobre essa literatura que encerra em si mesma imagens e representações do mal - e aqui ela se refere não somente a Sade, mas invoca a própria literatura batailliana.

Eliane aponta três leituras sobre esse suposto perigo. Roger Shattuck condena a literatura sadiana por apresentar, sim, perigo aos leitores, sendo sua concepção a de um leitor passivo diante de um texto ativo, capaz de ativar “fantasmas adormecidos”. Na contramão dessa concepção estão citados pela autora Octavio Paz, Maurice Heine e Henry Miller, afirmando a passividade ou inocência dos textos, estando os perigos concentrados na atividade ou “paixão” dos leitores. Uma terceira concepção, compartilhada por Eliane, seria a de Georges Bataille que, reconhecendo os perigos da literatura e como tal devendo esta se declarar “culpada”, aponta para uma parceria entre leitor e escritor, ou leitor e texto.

Há entre os dois uma “cumplicidade no conhecimento do mal”, Eliane cita Bataille e, nesta cumplicidade, se dá o risco de assumir a parceria, construindo-se, como leitor ativo, durante a leitura, como sujeito do conhecimento.

Vale lembrar aqui o primeiro ensaio deste volume de Lições em que os leitores são convidados a serem ousados, a mergulharem numa filosofia capaz de dizer tudo – Bataille aponta para a inorganicidade do texto que, portanto, pode dizer tudo, mas que, justamente por isso, torna-se perigoso ou transgressor. O esboço do leitor ideal de Sade, em sintonia com a obra, mas ao mesmo tempo preparado para o desconhecido, para o mergulho desconcertante e consciente do perigo, este é o convidado do Marquês, como nos mostra Eliane.


Nas repercussões a autora percorre ainda a leitura perversa dos médicos oitocentistas, a “fantasia raciocinante” de Sade por Octavio Paz, a particularidade e intimidade da leitura de Barthes, entre outras. Sem citar os inúmeros estudos sobre Sade que Eliane traz ao longo de seu texto e a sempre pontual e cuidadosa contextualização histórica da época do Marquês, iluminando seu tempo, sem apagar sua singularidade.

Irrelevante dizer o quanto é tarefa impossível dar conta do conteúdo de livro tão repleto de “delicadeza e rigor”, de autora tão erudita quanto o autor que aborda, esperando com isso estar instigando e convidando os leitores para este delicioso volume de ensaios, pleno de filosofia e desafiadoras lições lúbricas.

1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUCPR. e-mail:joorvatich@terra.com.br

Recebido em 10/06/2006; Aceito em 25/07/2006.

Revista de Filosofia Aurora

ISSN 0104-4443 e-ISSN 1980-5934

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Entrevista com Giannatasio - estudioso de Sade

Cartas aprofundam enigma do marquês encarcerado


Professor da UEL lança livro com cartas do Marquês de Sade, escritas na prisão de Vincennes. Textos mostram a formação do autor libertino


Homérico, cínico, dantesco, kafkiano, maquiavélico. Usamos essas palavras no dia-a-dia e muitas vezes não pensamos na origem delas. O mesmo se dá com os termos sádico e sadismo, que se referem ao prazer obtido às custas da dor alheia. As duas palavras, criadas pela psicopatologia do século XIX, têm origem no aristocrata francês Donatien-Alphonse François de Sade, o Marquês de Sade (1740-1814), talvez o mais famoso escritor libertino de todos os tempos.

Autor de clássicos da permissividade, como Justine e A filosofia na alcova, Sade passou grande parte de sua vida na prisão. Ateu, materialista, blasfemador, pornógrafo, iconoclasta e visceralmente individualista, foi encarcerado pelos três regimes políticos vigentes na França entre o final do século XVIII e o começo do século XIX. Foi preso durante o Antigo Regime, a Revolução e a Restauração, sob os governos de Luís XVI, Robespierre e Bonaparte. E sempre por motivos diferentes: loucura, perversão, incitamento ao crime e, pasmem, moderação. Isso mesmo: durante o regime do Terror, o Marquês de Sade foi acusado de “excessiva moderação” ao tentar livrar o pescoço dos condenados à guilhotina.

O historiador e professor Gabriel Giannattasio, da UEL, é um especialista em Sade. Em 1999, publicou o livro Sade – Um anjo negro da modernidade, sua tese de doutorado, em que discute a vida e a obra do marquês libertino.

Acaba de ser lançado o livro Cartas de Vincennes – Um libertino na prisão (Eduel, 154 páginas). A obra reúne 16 cartas escritas por Sade na prisão entre 1777 e 1784. As correspondências foram selecionadas, traduzidas e comentadas por Giannattasio.

As 16 cartas têm três destinatárias principais: a primeira mulher do escritor, Renné; a Senhora de Montreuil, a mais terrível das sogras (a acreditarmos em Sade, responsável por seu primeiro e longo encarceramento); e a Senhorita de Rousset (uma interlocutora do marquês).

Sade era sádico? A resposta, segundo o professor Giannattasio, não é tão simples como parece. O sadismo era apenas um dos aspectos desse turbulento romântico, dono de uma visão trágica da existência. As cartas de Vincennes, em vez de decifrar o enigma Sade, aprofundam-no. Acompanhe os principais trechos da entrevista com Gabriel Giannattasio e conheça um pouco mais do marquês libertino.

Entrevista
Gabriel Giannattasio, historiador e professor

“Sade chegou a ser condenado por ‘excesso de moderação’”

JL: De que maneira as cartas de Sade ajudam a compreender a vida e a obra do autor?

Gabriel Gianattassio –Eu acho que as cartas aprofundam o mistério de Sade. De certa forma, as cartas antecipam as obras do Marquês de Sade pelas quais ele ficaria conhecido. Quando ele está escrevendo as Cartas de Vincennes, ele não é o autor dos “120 Dias de Sodoma”, “Justine”, “Juliette”, “A Filosofia na Alcova” – enfim, ele não é um literato. O único texto que ele escreve no mesmo período dessas cartas é o “Diálogo entre o Padre e o Moribundo”. Depois desse período, quando realmente nasce o escritor Sade, o romancista Sade, as cartas se tornam burocráticas, administrativas. A energia literária do autor se desloca para as obras. As “Cartas de Vincennes”, ao contrário, representam o momento de gestação do grande escritor Marquês de Sade. Essas cartas têm um interesse todo particular porque mostram o processo do auto-elaboração do autor. Eu acho que as cartas já trazem o enigma, já contêm os personagens do romance filosófico sadiano.

O que o termo “sádico” tem a ver de fato com o Marquês de Sade?

O grande público muito provavelmente não leu uma obra de Sade, mas sabe o que é sádico e o que é sadismo. O que é o sadismo? É um reflexo da obra de Sade; e eu posso situar essa reflexão da obra do autor no século XIX. É uma leitura que a psicopatologia fez da obra do Marquês de Sade, da mesma forma que leu a obra de Masoch (literato alemão). Leram a obras desses autores não com interesse literário, mas com interesse médico, clínico. Da leitura dessas obras, cunharam expressões patológicas: sadismo, masoquismo, sadomasoquismo. Sádico se tornou o sujeito que tem prazer com a dor do outro. Essa leitura se consagrou – assim como as leituras de cínico, homérico, maquiavélico. Do ponto de vista patológico, o sadismo existia antes de Sade, da mesma forma que o maquiavelismo existia antes de Maquiavel. Maquiavel não produziu a corrupção da política: ele só a denunciou. Sade não inventa o sadismo: ele denuncia uma forma de crueldade que é típica do homem. Mas nós nos habituamos a identificar Sade com o sadismo; a maioria faz isso sem ter lido a obra de Sade. Sade é um autor que oferece múltiplas perspectivas. A leitura psicopatológica não é incorreta; mas é apenas uma entre muitas outras leituras de Sade. O problema é quando essa leitura se transforma na definição de Sade. Sade não é só isso. É também isso.

Como eram as relações de Sade com o Iluminismo?

Toda análise que eu faço indica que Sade estava na contracorrente do Iluminismo. Paradoxalmente, ele era herdeiro do Iluminismo, mas, ao colocar o corpo como instância última para julgar os fenômenos, distancia-se dos outros autores iluministas. Ele perverte o Iluminismo ao se contrapor à razão. Sade busca a razão do corpo; e percebe que o corpo não tem uma só razão. Há um livro de Sade que é exemplar nesse sentido: “A filosofia na alcova”. É o pensamento submetido ao crivo do corpo. A imagem da alcova é inicialmente arquietônica: no castelo aristocrático, era o espaço que estava entre o quarto e a sala, entre o mais íntimo e o mais público da casa. Em certo momento, ele diz: “Meu corpo de manhã tem uma disposição diferente da do meu corpo à noite. Posso acordar o mais virtuoso dos homens e me deitar o mais vicioso.” Diante das necessidades corpóreas, como eu posso ter uma única razão que dê conta de tanta multiplicidade. Sade é o materialismo levado às últimas consequências. Sade não se dispõe a fazer concessões. Isso explica, em parte, a façanha de Sade: ele conseguiu ser encarcerado pelos três regimes que a França conheceu do século XVIII para o XIX: o Antigo Regime, a Revolução e a Restauração.

Como foi o comportamento de Sade durante a Revolução Francesa, especificamente durante o período do Terror? Da mesma forma como em outras dimensões, a relação de Sade com a Revolução Francesa foi paradoxal. Sade era um aristocrata de nascimento, diferentemente de boa parte da aristocracia pré-revolucionária, formada por nobres que adquiriram títulos. Só que ele é posto em liberdade pela Revolução Francesa, em 1790. Até pouco antes da revolução, ele estava preso na Bastilha. Às vésperas da Tomada da Bastilha, Sade é transferido para outra prisão. Sade acredita que perdeu o texto que ele estava escrevendo na Bastilha – em letras minúsculas, em papéis que eram enrolados e escondidos na cela. “Choro lágrimas de sangue”, diz Sade, lamentando a perda do texto. Mas o manuscrito não se perdeu: é “As 120 Jornadas de Sodoma”, que foi recuperado no começo do século XX, em um sebo da Alemanha. Com a queda do Antigo Regime, Sade é posto em liberdade e acaba assumindo certas funções públicas no período revolucionário. Com o regime do Terror, ele é colocado sob suspeição, desta vez por outro motivo. Os revolucionários começam a desconfiar da atuação pública do Sade. Eles acham que o Sade fica tentando encontrar atenuantes para livrar o pescoço dos condenados à guilhotina. E Sade diz claramente – em suas correspondências – que é radicalmente contrário à pena da morte. Ele é acusado de quê? Excesso de moderação! Mais um paradoxo. Os revolucionários prendem Sade por excesso de moderação! Ele é condenado à guilhotina e só não morre porque o regime do Terror cai pouco antes da execução da sentença. Havia uma lista de condenados: não chegou a vez dele. Da janela da prisão, ele testemunhava diariamente as execuções na guilhotina. Cai o Terror, ele é posto novamente em liberdade. A relação de Sade com os regimes políticos é sempre conflituosa e paradoxal. Na Restauração, já com Napoleão Bonaparte no poder, ele é preso por outro motivo.

Sob Napoleão, Sade é julgado pelos padrões da saúde mental – e acabará morrendo no hospício. Que ele tinha de ser preso, era ponto pacífico. A dúvida é se deveria ser preso como louco ou como criminoso.

O motivo da terceira prisão – em 1801 – é a autoria dos romances “Justine” e “Juliette”. São dois romances publicados no fim do século XVIII que contam a história de duas irmãs. Esses romances podem ser lidos de forma independente, mas há uma unidade entre eles. Os títulos são “A nova Justine ou Os infortúnios da virtude” e “Juliette ou As prosperidades do vício”. Esses livros são publicados – como era uma característica da literatura erótica e pornográfica do século XVIII – anonimamente. Vários outros escritores fizeram isso quando produziam a chamada “literatura menor”. Só que descobrem que ele é o autor desses dois romances considerados imorais na época – e por isso ele é encarcerado. Nesse momento, já há uma discussão em torno do regime de encarceramento. Até aquele momento, os criminosos e loucos ficavam presos no mesmo lugar. No fim do século XVIII e começo do século XIX, começam a separar os presos que cometeram delitos comuns e os chamados loucos. A dúvida é: onde vamos prender o Sade – no hospício ou na cadeia? Ele era um problema até na hora de prendê-lo! Há uma discussão que é relatada pelos biógrafos. O médico diz que ele tem de ficar no hospício; o diretor da prisão diz que ele tem de ficar na cadeia. Esse período do último internamento é retratado no filme “Crônicas proibidas do Marquês de Sade”. É a época em que ele começa a escrever peças de teatro e dirigir os internos em encenações.

Nessa época, Napoleão era considerado um herói. E Sade era considerado louco ou criminoso. Não é mais um paradoxo?

A existência de Sade é paradoxal.