quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Estudo introdutório acerca do fetichismo / Introductory study about the fetishism

 obs.: Este artigo não trata especificamente de Sade, mas aborda uma tematica que é recorrente em suas obras: a perversão. O endereço da revista eletrônica encontra-se abaixo caso alguem tenha interesse neste tipo de discurssão.


http://www.contextosclinicos.unisinos.br/pdf/66.pdf

Maria Clarilene Medeiros Salvador Roberto

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

IDÉIAS LIBERTINAS PARA TEMPOS DE CLAUSTRO: A RECEPÇÃO BIOGRÁFICA DO MARQUÊS DE SADE NOS CIRCUITOS ACADÊMICOS BRASILEIROS

OBS.: Trabalho apresentado em um Coloquio Nacional na UFCG



Maria Clarilene Medeiros Salvador Roberto



Descendente de uma das mais antigas linhagens da nobreza francesa, Donatien Alphonse François de Sade - o Marquês de Sade - graças ao teor polêmico e iconoclasta da sua vasta produção literária, entrou para o rol das controversas personalidades históricas como ateísta, cético, contestador e niilista. O presente trabalho tem como objetivo discutir a recepção e a apropriação da biografia de Sade nos circuitos acadêmicos brasileiros, entre o fim da década de 60 e começo dos anos 80 do século XX.

As obras do Marquês foram proibidas ou malditas por mais de cem anos. Ainda que tenha vivido num período revolucionário (a Revolução Francesa), Sade foi perseguido, proibido e encarcerado durante a maior parte de sua vida, por todos os regimes sob os quais viveu. Apenas no século XX, as obras do Marquês começaram a ser resgatadas, principalmente a partir da paixão dos artistas surrealistas pelo escritor. Mas, mesmo assim, publicar Sade era motivo para ações judiciais, como ocorreu com o editor Jean-Jacques Pauvert, processado e multado em 1956 por divulgar a obra sadiana.

Nos anos 60, principalmente após o “Maio de 68”, a obra do Marquês começou a ser mais difundida. Sendo assim, parto do pressuposto de que as idéias libertinas de Sade parecem exercer certo fascínio entre os pensadores submetidos a contextos históricos, mais contemporâneos, marcados pela repressão, censura e autoritarismo, como no caso do Brasil. O trabalho está embasado teoricamente nos textos de Jean Orieux sobre A arte do biográfo (1986) e Pierre Bourdier, sobre A ilusão biográfica (2006) e tem como principal fonte a obra Sade: vida e obra (1978), de Fernando Peixoto.

Através dos séculos que nos separam da Revolução, Sade passou de agitador político para pornógrafo, daí para defensor do amor livre e, hoje em dia, autor Cult. Sade não é mais uma pessoa: como Che, ou Jesus Cristo, se tornou um símbolo, um mito passível de ser manipulado e maleado no que a sociedade quiser e, por consequência, a visão que se tem de Sade por dada sociedade revela mais sobre a mesma do que sobre Sade, pois como coloca Jean Orieux, do:

(...) convívio íntimo e prolongado nasce entre o biográfo e seu herói uma relação bastante curiosa. Não a que existe entre um romancista e suas criaturas, porque, por maior que seja a capacidade criativa do romancista, os seus personagens nasceram dele, só podem existir graças a ele, são, por mais que se queira, fictícios. Pelo contrário, eu sei, e não sou o único a sabê-lo, (...) que Talleyrand existiu, sem qualquer dúvida, em carne e osso, e os textos, que o evocam e entre cujas linhas descubro o seu rosto e as suas manigâncias, esses textos, dizia eu, não são letra morta, a vida corre e palpita através desses testemunhos. (ORIEUX, 1986, p. 45-6)

Os discursos elaborados em torno desse escritor libertino que influenciou uma época com suas idéias e ações possuem diversos matizes. Sade influencia o século XIX deixando as marcas de sua leitura seja na produção médico-psiquiátrica, seja na produção literária – particularmente nas tendências românticas do século XIX, com leitores como Baudelaire, Flaubert, Byron, Shelley, Saint-Beuve, Rimbaud, Julies Janin – e ainda deixando ainda claros resíduos de inspiração nas filosofias de Max Stirner e F. Nietzsche. Além de despertar o interesse em renomados acadêmicos brasileiros após a década de 60 do século XX.

Portanto, é importante discutir como esses testemunhos biográficos construíram vários marqueses de Sade, na medida em que atendiam as inquietações e aos valores próprios dos quadros históricos em que foram gestados. O culto à libertinagem protagonizado por Sade em suas obras e o alto preço que teve de pagar, com a própria liberdade, por defender suas idéias, desperta uma certa visão romântica por parte de seus biógrafos, inseridos quase sempre, em contextos sociais e políticos marcados por formas de vigilâncias e censuras muito rígidas. Vale ressaltar que tanto já existem diversos trabalhos biográficos sobre o marquês, bem como inúmeros exercícios de crítica literária em torno de sua obra, mas um estudo sobre as construções biográficas de Sade e suas implicações políticas e morais é ainda um empreendimento inédito.

O termo pornográfico não existia nesse momento, o nome dado a esse tratamento cultural do sexo era o de libertinagem. Segundo Raymond Trousson, em Romance e libertinagem no século XVIII na França, libertinagem caracterizava tanto uma escrita, quanto um comportamento engajado com a blasfêmia e mais ainda com “(...) uma escandalosa liberdade de costumes baseada na negação do pecado (...) e com o apelo à comunhão dos bens” (In: NOVAES, 1996, p. 165). Pornografia é uma invenção do século XIX, profundamente ligada ao desenvolvimento da cultura de massa, dos meios de comunicação e da pequena burguesia. Na época de Sade, seus livros não eram realmente entendidos como “pornográficos”. Escandalosos, sim, mas muito mais por causa de seu conteúdo iconoclasta do que por causa de representações explícitas de sexo. Essas últimas eram, afinal de contas, lugar comum na literatura até então, e não eram particularmente chocantes senão para os leitores mais pudicos.

Para a filósofa e escritora Simone Beauvoir (1961), a filosofia lúbrica e radical em torno da noção de liberdade, de Sade, precedia o existencialismo em mais de um século. Há quem o veja, ainda, como precursor do estudo do foco da sexualidade que permeia toda a psicanálise de Sigmund Freud. Após mais de dois séculos de sua morte, o marquês recebeu dos surrealistas o apelido de “divino”, entrando para o hall de gênios da literatura e da filosofia. Como coloca Eliane Moraes, em Sade: o crime entre amigos, os textos do marquês possuem “(...) relações estreitas com a sensibilidade vivida por seus contemporâneos” (In: NOVAES, op. cit., p. 250).

Diante dessas constatações, torna-se pertinente para uma analíse das construções biográficas em torno do marquês de Sade, as reflexões de Jean Orieux, em A arte do biográfo, acerca dos meandros e dos interesses que permeiam toda a atividade heurística dos biógrafos.



Considerações como essas podem auxiliar em uma pesquisa que vise discutir as finalidades políticas e morais que envolvem as elaborações discursivas em torno das identidades consideradas como desviantes ou, para me valer de um termo adotado pelo sociólogo e psicanalista Erving Goffman (1963), das identidades deterioradas pelas pechas da estigmatização social. O que está em pauta nesse trabalho é questionar e sondar as razões que levaram os biógrafos brasileiros a retirarem Sade do ostracismo, considerando que essa iniciativa também corresponde a uma inquietação histórica, e como se deu a recepção das idéias libertinas de uma vida em claustro em uma época marcada pela censura institucionalizada.

Também se torna pertinente citar as reflexões do sociólogo Pierre Bourdieu (2006) em torno da noção de ilusão biográfica. Essa ilusão é gestada quando os biógrafos ocultam em suas narrativas, sobre a vida de grandes personalidades, os dissabores, as vergonhas e os encontros com o azar vividos pelos biografados. Ainda segundo o autor:



Falar de história de vida é pelo menos pressupor – e isso não é pouco – que a vida é uma história e que, [...] uma vida é inseparavelmente o conjunto dos acontecimentos de uma existência individual concebida como uma história e o relato dessa história. [...] Tentar compreender uma vida como uma série única e por si suficiente de acontecimentos sucessivos, sem outro vínculo que não a associação a um ‘sujeito’ cuja constância certamente não é senão aquela de um nome próprio, é quase tão absurda quanto tentar explicar a razão de um trajeto de metrô sem levar em conta a estrutura da rede, isto é, a matriz das relações objetivas entre as diferentes relações. (BOURDIEU, 2006, p. 183)



Os textos sadianos e as abordagens biográficas em torno do marquês podem ser analisados como fontes entranhadas de história. O estudo da recepção sadiana nos espaços acadêmicos modernos é uma área ainda repleta de lacunas e, nesse sentido, ao me valer dos discursos biográficos como fontes para uma compreensão de como a figura de Sade é ressignificada pelos autores do século XX, é importante salientar que “na experiência estética, o sujeito tem a possibilidade de se afastar de si, de seus hábitos e valores cotidianos para se experimentar na alteridade do outro. É inegável, pois, o ganho da interpretação” (LIMA, 1979, p. 22). Portanto, depreender e fazer falar o que está dentro e fora dos textos biográficos de época e contemporâneos sobre a trajetória do marquês do Sade é essencial para que sejam ampliados os círculos de debates sobre esse polêmico escritor.

Na obra Sade: um anjo negro da modernidade (2000), Gabriel Giannattasio se refere à trajetória de Sade enquanto ator histórico enquanto um capítulo da história no campo da história das idéias. Nesse sentido, para Giannattasio (2000, p.48), as obras de Sade, mais que objetos de reflexão estética para a crítica literária, devem ser abordadas enquanto objetos destinadas a reflexões filosóficas, pois trata-se de um autor que “deseja tudo dizer, pois almeja tudo conhecer”. Nesse sentido, Giannattasio busca compreender como ocorreu uma profunda empatia por parte dos autores surrealistas do século XX com o teor das obras sadianas. A partir desse pressuposto, podemos entender o quanto de implicações políticas permeiam as apropriações contemporâneas de Sade, pois, ainda segundo Giannattasio:



Há entre Sade e o surrealismo uma rede de vasos comunicantes, construídos a partir da intricada interdependência da língua e da cultura francesa. Os traços da revolta em Sade e no surrealismo trazem as marcas de uma rebelião que vão além dos limites formais da língua – sabe-se o quanto os surrealistas experimentaram em matéria de linguagem – dirigindo suas energias contra o coração, este centro catalisador e propulsor dos valores de uma nação, contra o que deveria ser a identidade cultural de um povo. (GIANNATTASIO, 2000, p. 53)



Essa dimensão iconoclasta que diz respeito a umas das possibilidades interpretativas para a literatura sadiana atende, em cheio, aos interesses contestadores e sediciosos daqueles que almejam, por meio das idéias, afrontarem os ditames oficiais de uma ordem instituída através do autoritarismo e da repressão sistematizada. Trata-se de evocar a presença de uma identidade biográfica, tida apenas como ímpia e motivo para o esquecimento, que teceu uma séria crítica as hierarquias sociais e aos abusos de poder cometidos pelas elites aristocráticas de seu tempo. Nesse sentido, o crescente interesse pela biografia de Sade, no período que corresponde aos anos de chumbo da ditadura militar – no Brasil – é, antes de tudo, um interesse em se forjar, através da imagem de Sade, uma espécie de mito portador de toda a rebeldia suprimida e cerceada pelos dispositivos de censura política próprios dos governos militares.

Nesse sentido, torna-se revelador o título do capítulo Prefiro a morte do que a perda da liberdade, da obra Sade: vida e obra, publicada em 1978, de Fernando Peixoto. Nesse sentido, Peixoto destaca a angústia sofrida por Sade enquanto esteve encarcerado na cidade de Miolans, na Sardenha. O biográfo destaca, inclusive, as tentativas realizadas por Sade de subornar os oficiais da prisão para facilitarem uma possível fuga. Impossível não contextualizar toda essa apologia a liberdade realizada por Fernando Peixoto dentro da premissa de que esse biográfo brasileiro do Marquês esteve engajado com o que se pode teatro de resistência, durante toda a ditadura militar.

Peixoto, além da obra biográfica de Sade, é autor de uma série de livros cujos temas variam desde a analise da histeria anticomunista em Hollywood; a questão da abordagem de temas políticos no teatro e até uma biografia do poeta russo Maiakovski, famoso partidário do ideário socialista cujo desencanto com os rumos da Revolução Russa o levou a cometer suicídio. Nesse sentido, se na introdução da sua obra, Peixoto (1978, p. 11) considera que Sade é “produto da repressão”, seu estudo também se enquadra em uma espécie de:



(...) protesto em favor do homem livre, (...) [ou] denúncia de uma civilização fundamentada nos instintos planejadamente reprimidos, baseada na hipocrisia, no preconceito, na corrupção, na injustiça, na divisão social e na mais feroz crueldade. (PEIXOTO, 1978, p. 11)



Aos traumas vivenciados pelo Marquês durante seqüências ininterruptas de internações em instituições penais, desde a prisão de Vincennes até a temida Bastilha, Peixoto acrescenta sua própria experiência enquanto teatrólogo profundamente engajado com uma arte simpática ao ideário socialista. Nesse sentido, Peixoto também destaca, no capítulo Últimas obras de um aristocrata melancólico, um Sade profundamente preocupado com as grandes questões históricas de sua época na obra História secreta de Isabelle de Baviera, revisada em 1813, por volta de 1 mês antes de escritor morrer nas dependências do asilo de Charenton.

No citado romance, segundo Peixoto, temos um Sade, inclusive, tecendo algumas considerações sobre as diferenças entre o oficio do historiador e a atividade do romancista. Nesse sentido, Sade defende que o distanciamento temporal entre o historiador e os eventos que estuda é fundamental para que os fatos sejam apreendidos e compreendidos com fidelidade. Como coloca o biográfo, ao longo do romance, Sade “não somente conta a história, mas passa o tempo todo criticando os historiadores tradicionais que se limitam a repetir os dados conhecidos (...)” (PEIXOTO, 1978, p. 252). Partindo dessa visão que prezava pela necessidade da visão crítica em torno dos eventos históricos, Peixoto coloca que o último romance escrito pelo libertino é marcado por raras descrições de cenas eróticas, mas que está repleto de reflexões sobre:



(...) O mecanismo do poder, a ambição desmedida, o crime impune dos poderosos e a terrível e sangrenta política da corte, que move os acontecimentos históricos segundo interesses pessoais, massacrando o povo, totalmente isolado do processo político, servindo apenas para carne enviada as batalhas, provocadas pelos interesses mais mesquinhos e mais imbecis de um bando de ricos senhores, que cada vez desejam mais posses e mais poder; (...). (PEIXOTO, 1978, p. 253-4)



Nesse sentido, Fernando Peixoto revela ao leitor um Sade bastante diferente do que aquele autor bastante reconhecido pela minúcia, para muitos críticos literários, desconfortante pela qual descrevia cenas de mutilação, além do uso de lâminas, ferros em brasa, chicotes e correntes em vitimas suplicantes praticado por algozes entregues aos instintos mais voluptuosos, cuja ânsia por prazer não tinha limites e estava alicerçado, sobretudo, na humilhação e submissão do outro a situações de dor e tortura psicológica extrema.

Eliane Robert Morais, em Lições de Sade: ensaios sobre a imaginação libertina (2006), considera que este outro Sade que termina por surpreender o leitor com uma linguagem sofisticada e profundamente engajada com as grandes contestações filosóficas de seu tempo, bem própria dos guetos e das tavernas de quinta categoria por onde circulavam os livres pensadores da França do oitocentos, é, sem sombra de dúvida, o mesmo que almejou iluminar “as paixões mais tenebrosas do homem, as mais clandestinas, as mais proibidas. E, ao fazê-lo, ele dá voz à violência de cada um, responsabilizando cada individuo, e não a nação, pelo crime cometido” (MORAIS, 2006, p. 73).

Também é de Eliane Morais o estudo Sade: a felicidade libertina (1994). Nessa obra, bem anterior sobre sua pesquisa em torno da imaginação libertina do Marquês, temos uma afirmação que vale a pena citar: a autora afirma que Sade, ao passar grande parte da existência trancafiado em prisões e institutos psiquiátricos, transformou as situações de privação da liberdade que passou em pontos de partidas que lhe permitiram alçar longos e livres vôos imaginativos. Assim, houve “(...) a supremacia da imaginação sobre o biográfico” (MORAIS, 1994, p. 208).

Essa ruptura entre a realidade vivida pelo autor e o teor lúbrico e libertino de suas obras parece ser o grande motivo de frenesi entre o biográfo brasileiro e seu biografado francês. No panfleto Súplica de um cidadão de Paris ao rei dos Franceses, escrito por Sade, temos um texto que afirma essa versão filosófica do Marquês. No texto, Sade declara não ser um inimigo da monarquia, mas afirma que o maior culpado da Revolução Francesa foi o próprio rei. Mas segundo Peixoto, Sade tanto foi uma vítima da monarquia quanto da república francesa. É revelador, nesse quesito, as considerações de Peixoto sobre o discurso do escritor pronunciado em uma assembléia geral na cidade de Piques.

Segue o trecho:



(...) o direito fundamental de recusar e aceitar. A soberania é uma e indivisível e será destruída se for partilhada, será perdida se for transmitida. Sade não se refere as leis e decretos regulamentares, mas sim as normas constitucionais. E sugere um processo de centralismo democrático para que toda a Nação, reunida em assembléias parceladas, analise, discuta, debata cada proposta enviada pelos mandatários. (...) Enfim, é preciso sempre consultar o povo: é sobre essa parcela mais maltratada da população que as leis se abatem, e cabe a ela escolher democraticamente as leis as quais consente em se submeter, em pleno exercício de uma liberdade real. O discurso de Sade, ouvido duas vezes pela assembléia geral da seção de Piques, foi impresso e imediatamente enviado as outras 47 seções (...). (PEIXOTO, 1978, p. 185)





Peixoto carrega nas tintas ao pressupor um Sade antenado com idéias democráticas durante o alvorecer da república francesa. As idéias políticas de Sade caminham mais em direção a noção do regime do déspota esclarecido, do que, propriamente, a de uma monarquia “populista”. O biógrafo projeta suas ilusões em torno de uma verdadeira construção mítica que faz do biografado. Na verdade, não é novidade para os biógrafos se referirem aos seus objetos de estudo como pessoas póstumas, a frente de seu tempo, cuja compreensão da importância de seus legados não fora legível aos seus contemporâneos. Seria pensar, nessa modalidade de biografia, em uma verdadeira historia das idéias fora de seu lugar.

Ao desfrutar, durante boa parte da vida, de todas as vantagens que um sistema profundamente hierarquizado e alicerçado na soberania do absolutismo pode lhe proporcionar, sobretudo, na construção de sua formação intelectual, é evidente que Sade não almejava a implantação de uma democracia populista em um momento histórico em que as grandes correntes do pensamento de esquerda como o anarquismo, o socialismo e o comunismo, não passavam de embriões ainda em fase de gestação. O contexto de 70, do século XX, no qual se situa Peixoto é que estava bem mais próximo desse tipo de anseio.

Portanto, a partir das considerações de Bourdier e de Orieux, pode-se ver como ao longo das construções biográficas, estudiosos acabam, pela relação de empatia que possuem com o biografado, projetando sobre ele algumas das suas próprias inquietações filosóficas e políticas. O discurso biográfico, em se tratando de uma escolha narrativa, é dotado de uma série de implicações morais e até extra-cientificas. No caso de Sade, a longa apologia em prol da extrema liberdade individual, mesmo que isso implique na humilhação e na tortura do outro, que teceu é recepcionada pelo teatrólogo brasileiro Fernando Peixoto como uma espécie de grito de protesto contra o autoritarismo e a censura institucionalizada, própria do tempo que estava vivendo ao escrever Sade: vida e obra.





REFERÊNCIAS:





BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, Marieta de Morais & AMADO, Janaína (orgs.). Usos e abusos da história oral. 8ª. ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2006.



BEAUVOIR, Simone de. Deve-se queimar Sade? in: Novelas do Marquês de Sade. São Paulo: Difel, 1961.



GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4ª. ed. Tradução de Márcia Nunes. Rio de Janeiro: LTC Editora, 1963.



LIMA, Luís Costa (org.). A literatura e o leitor: textos de estética da recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.



MORAIS, Eliane Robert. Lições de Sade: ensaios sobre a imaginação libertina. São Paulo: Iluminuras, 2006.

_____. Sade: a felicidade libertina. Rio de Janeiro: Imago, 1994.



NOVAIS, Adauto (org.). Libertinos libertários. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.



ORIEUX, Jean. A arte do biográfo. In: LE GOFF, Jacques [et. alli.]. História e nova história. 3a. ed. Lisboa: Teorema, 1986.



PEIXOTO, Fernando. “Sade: vida e obra”. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1978.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

" Deve-se queimar Sade?"

OBS.: quem desejar o texto completo envie um email solicitando para: clarilenemedeiros@hotmail.com

"FAUT-IL BRÛLER SADE?"

Simone de Beauvoir
1955

            Voluntarioso, colérico, arrebatado, extremado em tudo, de um desregramento de imaginação quanto aos costumes como igual nunca houve, ateu até o fanatismo, eis em duas palavras como eu sou; e repito: matem-me ou aceitem-me assim, porque eu jamais mudarei.

            Eles escolheram matá-lo, primeiro a fogo lento no tédio dos calabouços, depois pela calúnia e pelo esquecimento; esta morte, ele próprio a desejara: Uma vez fechada a cova, plantem-lhe em cima bolotas, a fim de que com o tempo... desapareçam da face da terra os vestígios da minha sepultura, tal como eu espero que a minha memória se apagará da lembrança dos homens. Das suas últimas vontades esta foi a única respeitada, porém muito cautelosamente: a lembrança de Sade foi desfigurada por lendas estúpidas ; seu próprio nome se diluiu em palavras sombrias: sadismo, sádico; seus diários íntimos perderam-se, queimaram-se os manuscritos — os dez volumes das Journées de Florabelle por instigação do próprio filho — seus livros foram proibidos; embora, nos fins do século XIX, Swinburne e alguns curiosos se interessem pelo seu caso, só com Apollinaire lhe será dado um lugar nas letras francesas; ainda assim, está longe de tê-lo conquistado oficialmente: é possível folhear obras alentadas e minuciosas sobre “as Idéias do século XVIII”, mesmo sobre “a Sensibilidade do século XVIII”, sem nelas encontrar uma única vez o seu nome. Compreende-se que, em represália contra este silêncio escandaloso, os devotos de Sade fossem levados a saudar nele um genial profeta: sua obra anunciaria ao mesmo tempo Nietzsche, Stirner, Freud e o surrealismo; mas este culto, baseado como todos os cultos num equívoco, divinizando o “divino marquês” acaba, por seu turno, atraiçoando-o; quando desejaríamos compreendê-lo, prescrevem-nos adorá-lo. Os críticos que não fazem de Sade um monstro nem um ídolo, mas apenas um homem, um escritor, contam-se nos dedos da mão. Graças a eles, Sade voltou enfim à terra, para nosso meio. Mas onde se situa ele justamente? Em que merece o nosso interesse? Seus próprios admiradores reconhecem, de bom grado, que a sua obra é na maior parte ilegível; filosoficamente, só escapa à banalidade para afundar na incoerência. Quanto a seus vícios, tampouco espantam pela originalidade; nesse domínio Sade nada inventou e, nos tratados de psiquiatria, encontramos em profusão casos pelo menos tão estranhos quanto o dele. Na verdade, não é como autor nem como pervertido sexual que Sade se impõe à nossa atenção: é pela relação que criou entre estes dois aspectos de si mesmo. As anomalias de Sade adquirem valor desde o momento em que, em vez de suportá-las como um dado temperamento, elabora um imenso sistema a fim de reivindicá-las; inversamente, seus livros prendem-nos desde que compreendamos que, através das suas repetições, dos seus clichês, das suas inépcias, ele tenta comunicar-nos uma experiência cuja particularidade reside, todavia, no fato de ela querer-se incomunicável. Sade tentou converter o seu destino psicofisiológico numa opção ética; e desse ato, pelo qual assumia esta separação, pretendeu fazer um exemplo e um apelo: é por esse lado que sua aventura se reveste de larga significação humana. Poderemos, sem renegar a nossa individualidade, satisfazer nossas aspirações à universalidade? Ou é apenas pelo sacrifício das nossas diferenças que poderemos integrar-nos na coletividade? Este problema interessa a todos nós. Em Sade, as diferenças são levadas até o escândalo, e a imensidão do seu trabalho literário mostra-nos com que paixão ele desejava ser aceito pela comunidade humana: o conflito, a que nenhum indivíduo escapa sem mentir a si próprio, encontramo-lo nele na forma mais extrema. É o paradoxo, e em certo sentido o triunfo de Sade, que, por haver-se obstinado nas suas singularidades, nos ajuda a definir o drama humano em sua generalidade.
            Para compreender a evolução de Sade, para apreender nesta história a parte de sua liberdade, para avaliar seus êxitos e derrotas, seria útil conhecer exatamente os dados de sua situação. Infelizmente, apesar do zelo de seus biógrafos, a pessoa e a história de Sade permanecem obscuras em muitos pontos. Não possuímos dele nenhum retrato autêntico, e as descrições que a seu respeito nos deixaram seus contemporâneos são muito pobres. Os depoimentos do processo de Marselha revelam-no, aos trinta e dois anos, “de bela aparência, rosto cheio, estatura média, vestindo um fraque cinzento e calções de seda cor de maravilha, com uma pluma no chapéu, a espada na cinta e uma bengala na mão”. Ei-lo aos cinqüenta e três anos, de acordo com um atestado de residência datado de 7 de maio de 1793: “Altura de cinco pés e duas polegadas, cabelo quase branco, rosto redondo, fronte descoberta, olhos azuis, nariz comum, queixo redondo”. Os sinais de 23 de março de 1794 são um pouco diferentes: “Altura de cinco pés, duas polegadas e uma linha, nariz médio, boca pequena, queixo redondo, cabelos loiro-acinzentados, rosto oval, fronte descoberta e alta, olhos azul-claros”. Perdera, então a sua “bela aparência”, tanto que escrevia alguns anos antes da Bastilha: Adquiri, por falta de exercício, uma corpulência tão grande que mal me posso mexer. É esta corpulência que começa por impressionar Charles Nodier quando encontra Sade, em 1807, em Sainte-Pélagie: “Uma obesidade enorme, que lhe embaraça os movimentos, impedia-o de mostrar um resto de graça e elegância de que se surpreendiam vestígios no conjunto das suas maneiras. Os olhos cansados conservavam, todavia, algo de brilhante e febril, reanimando-se de vez em quando, como a fagulha expirante de uma brasa extinta”. Estes testemunhos, os únicos que possuímos, mal nos permitem evocar um rosto singular; houve quem dissesse que a descrição de Nodier lembra Oscar Wilde envelhecido; mas também sugere Montesquieu, Maurice Sachs, lembrando em Sade qualquer coisa de Charlus; de qualquer modo é indício muito frágil. O mais lamentável ainda é que estejamos tão mal informados acerca de sua infância. Se tomarmos o relato de Valcour por um esboço de autobiografia, Sade teria conhecido desde cedo o ressentimento e a violência; criado junto de Louis-Joseph de Bourbon, que tinha justamente a sua idade, parece que se defendeu da arrogância egoísta do pequeno príncipe com fúrias e pancadas tão brutais que se tornou necessário afastá-lo da corte. Não assiste dúvida de que sua estada no triste castelo de Saumane e na decadente abadia de Ébreuil lhe haja marcado a imaginação; mas, a respeito dos seus curtos anos de estudo, da passagem pelo exército, da sua vida de gentil mundano e libertino nada sabemos de significativo. Podemos tentar inferi-lo da sua obra para a sua vida, como, aliás, fez Klossowski, que vê, no ódio votado por Sade à mãe, a chave dessa vida e dessa obra; mas ele induziu esta hipótese do papel representado pela mãe nos escritos de Sade; limitou-se a descrever sob certo ângulo o mundo imaginário do marquês; não nos revelou as suas raízes no mundo real. De fato, é a priori, segundo esquemas gerais, que suspeitamos a importância das relações de Sade com o pai e com a mãe; em seu pormenor específico, elas nos escapam. Quando começamos a descobrir Sade, ele já é homem feito e não sabemos como se tornou o que é. Semelhante ignorância impede-nos de apreciar suas tendências e atitudes espontâneas; a natureza da sua afetividade, os aspectos singulares da sua sexualidade surgem-nos como dados que simplesmente nos cumpre constatar. Desta deplorável lacuna resulta que a intimidade de Sade nos escapará sempre; toda explicação deixará atrás de si um resíduo que apenas sua história infantil poderia esclarecer. Contudo, esses limites impostos à nossa compreensão não devem desanimar-nos, porque Sade, como dissemos, não se cingiu a sofrer passivamente as conseqüências de suas primitivas opções; o que nele nos interessa, muito mais do que suas anomalias, é a maneira como as assumiu. De sua sexualidade ele fez uma ética, e manifestou essa ética em uma obra literária; é por este movimento refletido da sua vida de adulto que Sade conquistou verdadeira originalidade. A razão dos seus gostos nos permanece obscura, mas é-nos possível perceber como converteu esses gostos em princípios e por que os afirmou até o fanatismo.
            Superficialmente, aos vinte e três anos, Sade assemelha-se a qualquer dos filhos-família de seu tempo; instruído, aprecia o teatro, as artes, a leitura; perdulário, mantém uma amante, a Beauvoisin, e freqüenta as casas de rendez-vous; casa-se sem entusiasmo, de acordo com a vontade paterna, com uma jovem da pequena nobreza, porém rica, Renée-Pélagie de Montreuil. Nessa altura eclode o drama que repercutirá — e se repetirá durante toda a sua vida: casado em maio, é preso em outubro por excessos cometidos numa casa que visitava desde o mês de junho; os motivos dessa prisão são bastante graves para que Sade dirija ao governador do presídio cartas desvairadas, suplicando que sejam mantidos em segredo, do contrário, diz ele, estará irremediavelmente perdido. Este episódio nos faz pressentir que o erotismo de Sade já apresentava um caráter inquietador; hipótese confirmada um ano mais tarde, quando o inspetor Marais adverte as cafetinas para que não mais cedam mulheres ao marquês. Porém, o seu interesse reside menos nas informações que nos propicia do que na revelação que constituiu para o próprio Sade: no início de sua vida de adulto, ele descobre brutalmente que entre sua existência social e os prazeres individuais é impossível uma conciliação.
            O jovem Sade nada tem de revolucionário, sequer de revoltado; está perfeitamente disposto a aceitar a sociedade como ela é; obediente ao pai , a ponto de receber dele, aos vinte e três anos, uma esposa que lhe desagrada, não encara outro destino além do que hereditariamente lhe está indicado: será marido, pai, marquês, capitão, castelão, tenente-general; não deseja absolutamente renunciar aos privilégios que sua condição e a fortuna da esposa lhe garantem. Contudo, isso não mais o satisfaria; oferecem-lhe ocupações, cargos, honras, mas nenhum empreendimento, nada que interesse, que divirta, que agite; não quer ser apenas o personagem público cujas atitudes todas são comandadas pelas convenções e pela rotina, mas também um indivíduo vivo e, se há um lugar onde este possa afirmar-se, não é o leito onde o acolhe fatalmente uma esposa virtuosa, mas a casa escusa onde compra o direito de desencadear seus sonhos. Um desses sonhos é comum à maioria dos jovens aristocratas desse tempo; rebentos de uma classe decadente, que ainda não há muito detinha um poder concreto, mas que não mais possui qualquer influência real sobre o mundo, tentam ressuscitar simbolicamente, no segredo das alcovas, a condição de que conservam a nostalgia, a do déspota feudal solitário e soberano; as orgias do Duque de Charolais, entre outras, eram famosas e sanguinolentas, e é dessa ilusão de soberania que Sade, por sua vez, tem sede. O que se deseja quando se goza? Que tudo o que nos cerca apenas se ocupa de nós, pense em nós, se interesse apenas por nós... não há homem que não queira ser déspota quando... A embriaguez da tirania leva imediatamente à crueldade, porque o libertino, molestando o objeto de que se serve, experimenta todos os encantos que um indivíduo nervoso prova ao fazer uso das suas forças; domina, é tirano.
            Na realidade, é uma proeza bem mesquinha chicotear, mediante retribuição ajustada, algumas mulheres; e que Sade atribua a isso tamanha importância é um fato que o põe desde logo em pauta. Surpreende que fora das paredes de sua “pequena casa” ele não pense de forma nenhuma em fazer uso das suas forças; não se lhe percebe nenhuma ambição, nenhum espírito de iniciativa, qualquer vontade de poder e não estou mesmo longe de imaginá-lo covarde. Não há dúvida de que ele sistematicamente imputa aos seus heróis todas as características que a sociedade considera como taras; mas descreveu Blangis com tal complacência que nos assiste o direito de supor que se tenha projetado neste, e tais palavras adquirem o tom direto de uma confissão: Um menino decidido teria assustado aquele colosso... mostrava-se tímido e covarde, e a idéia da luta menos perigosa, mas em igualdade de forças, levá-lo-ia a fugir até o fim da terra. Que Sade, ora por estouvamento, ora por generosidade, tenha sido capaz de extravagantes audácias, não contradiz a hipótese de uma timidez medrosa em relação aos seus semelhantes, e mais geralmente diante da realidade do mundo. Se fala tanto na fortaleza de alma, não é que a possua mas porque a inveja: na adversidade, lastima-se, agita-se, desnorteia-se. O temor à falta do dinheiro, que incessantemente o persegue, traduz uma inquietação mais difusa: ele desconfia de tudo e de todos porque se sente inadaptado. E o é: comporta-se desordenadamente, acumula dívidas, exalta-se despropositadamente, foge ou rende-se sem critério; cai em todas as armadilhas. Passa a desinteressar-se desse mundo a um tempo aborrecido e ameaçador que nada lhe propõe de válido e ao qual pede demais; irá buscar, alhures, a sua verdade. Quando escreve que a paixão do gozo subordina e reúne ao mesmo tempo todas as outras, dá-nos exata descrição de sua própria experiência; subordinou a sua existência ao seu erotismo porque este se lhe afigurou a única realização possível desta existência; se ele se lhe devota com tal ímpeto, imprudência e obstinação, é porque concede maior importância às histórias que através do ato voluptuoso ele próprio se relata do que aos acontecimentos contingentes: escolheu o imaginário.
            Decerto, começou por julgar-se seguro em seus paraísos quiméricos que um compartimento estanque parecia separar do universo do sério. E talvez não houvesse estourado nenhum escândalo, não passasse de um devasso comum, conhecido nos locais especializados pelos gostos um tanto
especiosos; nessa época, havia muitos libertinos que se entregavam às piores orgias, impunemente; mas parece-me que no caso de Sade o escândalo era fatal; há certos “pervertidos sexuais” aos quais se aplica exatamente o mito de Mr. Hyde e do Doutor Jekyll; esperam, de início, satisfazer os “vícios” sem comprometer seu personagem oficial; mas, caso sejam bastante imaginativos para pensar-se, acabam desmascarando-se por uma vertigem em que se misturam vergonha e orgulho: por exemplo, Charlus, apesar dos seus ardis e pelos seus próprios ardis. Em que medida houve provocação na imprudência de Sade? É impossível dizê-lo. Sem dúvida, quis afirmar a radical separação entre sua vida familiar e seus prazeres privados; e, decerto, não podia contentar-se com esse triunfo clandestino senão levando-o ao ponto-limite onde ele ultrapassava a clandestinidade. Sua surpresa se assemelha a de uma criança que bate num vaso até quebrá-lo. Brincando com o perigo, julgava-se ainda soberano; mas a sociedade espreitava-o; ela recusa qualquer partilha, reclama cada indivíduo sem reserva, e não tardou a apoderar-se do segredo de Sade e a integrá-lo na figura do crime.
            Sade começou reagindo por súplicas, humildade e vergonha; pediu que lhe permitissem rever a esposa, acusando-se de tê-la ofendido gravemente; solicita um confessor e abre-lhe a alma. Isto não é pura hipocrisia; de um dia para outro operou-se uma terrível metamorfose: comportamentos naturais, inocentes, que até então não passavam de fontes de prazer, ei-los convertidos em atos puníveis, e o moço gentil transformou-se em cão sarnento. É provável que ele tivesse conhecido desde a infância — talvez através das suas relações com a mãe — o odioso dilaceramento do remorso; porém o escândalo de 1763 reaviva-o de maneira dramática: Sade pressente que doravante será um criminoso para o resto da vida. Pois atribui demasiado valor às suas diversões para encarar, por um instante sequer, a possibilidade de renunciar a elas, e não tardará a libertar-se da vergonha pelo desafio. É notável que o primeiro dos seus atos deliberadamente escandalosos se situe logo após a detenção: a Beauvoisin acompanha-o ao palácio de La Coste, e sob o nome de Mme de Sade dança e representa diante de toda a nobreza provençal, enquanto o capelão do marquês se vê constrangido a uma tácita cumplicidade. A sociedade negou-lhe qualquer liberdade clandestina, pretendeu socializar o seu erotismo: inversamente, a vida social do marquês desenrolar-se-á doravante num plano erótico. Visto não ser possível separar tranqüilamente o mal do bem, para se entregar alternativamente a um e a outro, é em face do bem e mesmo em função dele que cumpre reivindicar o mal. Que a sua atitude ulterior tem suas raízes no ressentimento, Sade no-lo confiou em várias oportunidades: Há almas que parecem endurecidas à força de serem suscetíveis de emoções e que vão às vezes demasiado longe: o que nelas tomamos por indiferença e crueldade não passa de um modo só delas conhecido de sentir mais vivamente que as outras . E Dolmancé imputa seus vícios à maldade dos homens: Foi a ingratidão deles que secou meu coração, sua perfídia que destruiu em mim as virtudes funestas para as quais eu talvez tivesse nascido como vós... A moral demoníaca, que mais tarde ele erigirá em teoria, é inicialmente para Sade uma experiência vivida.
            Foi através de Renée-Pélagie que Sade conheceu toda a sensaboria da virtude e o seu tédio: ele os confunde numa aversão que só um ser de carne e osso pode suscitar; mas o que também aprende de Renée com delícia, é que, sob a sua figura concreta, carnal, individual, o bem pode ser vencido em combate singular; a esposa não é para ele uma inimiga, mas, como todos os personagens de esposas que ela lhe inspirou, uma vítima de eleição: a que se deseja cúmplice. As relações de Blamont com a esposa refletem sem dúvida com bastante exatidão as de Sade com a marquesa; Blamont se compraz em acariciar a esposa no instante em que trama contra ela as mais negras maquinações; infligir um gozo — Sade compreendeu-o cento e cinqüenta anos antes dos psicanalistas, e são numerosas em sua obra as vítimas submetidas ao prazer antes de torturadas — pode ser uma violência tirânica, e o carrasco disfarçado em amante encanta-se com ver a apaixonada crédula, desfalecida de voluptuosidade e gratidão, confundir a maldade com a ternura. Unir alegrias tão sutis à realização de um dever social foi, decerto, o que animou Sade a dar três filhos à esposa. Mas obteve ainda outras vantagens: a virtude tornou-se aliada do vício e sua escrava. Durante anos, Mme de Sade acobertou as culpas do marido, ajudou-o corajosamente a fugir de Miolans, favoreceu o caso da irmã com o marquês e depois as orgias do castelo de La Coste; chegou a tornar-se ela própria criminosa quando, para anular as acusações de Nanon, escondeu talheres de prata em sua bagagem. Sade nunca lhe manifestou qualquer reconhecimento, e a idéia de gratidão é uma das que ele enterra mais obstinadamente; sem dúvida, experimentava por ela essa amizade ambígua que todo déspota dedica ao que é incondicionalmente seu. Graças a ela, não só pôde reconciliar o papel de marido, pai e fidalgo com seus prazeres, como ainda estabeleceu a irrecusável superioridade do vício sobre a bondade, a dedicação, a fidelidade e a decência, e ridicularizou maravilhosamente a sociedade, submetendo a instituição do casamento e todas as virtudes conjugais aos caprichos de sua imaginação e de seus sentidos. Se Renée-Pélagie é o êxito mais triunfante da Sade, Mme de Montreuil resume a sua derrota; ela encarna a justiça abstrata e universal contra a qual o indivíduo se despedaça; é contra ela que o marquês reclama mais acerbamente a aliança da esposa: ganhando o processo aos olhos da virtude, a lei perde muito do seu poder; pois suas armas mais temíveis não são a prisão e o cadafalso, mas o veneno com que infecta os corações vulneráveis. Sob a influência da mãe, Renée perturba-se; a jovem freira assusta-se; a sociedade hostil insinua-se no lar de Sade, arruína-lhe os prazeres, ele mesmo sofre sua influência; apostrofado, amaldiçoado, duvida de si; e aqui está o supremo crime cometido por Mme de Montreuil contra ele: um culpado é primeiramente um acusado; foi ela que fez de Sade um criminoso. Eis por que através dos seus livros nunca mais deixará de ridicularizá-la, de aviltá-la, de torturá-la; nela ele assassina suas próprias culpas. É possível que a hipótese de Klossowski tenha fundamento e que Sade tenha abominado a própria mãe: assim o sugere a natureza singular da sua sexualidade; mas essa inimizade talvez não permanecesse tão viva se a mãe de Renée lhe não houvesse tornado odiosa a maternidade; e, para falar a verdade, ela representou na existência do genro um papel assaz importante e atroz para permitir supor que dirigia esse ódio tão-somente contra ela. É de qualquer modo a ela que a filha brutalmente injuria nas últimas páginas da Philosophie dans le boudoir.
            Se Sade foi finalmente vencido pela sogra e pela lei, tornou-se cúmplice dessa derrota. Qualquer que fosse a parte do acaso e a da sua imprudência no escândalo de 1763, o certo é que daí por diante ele buscou no perigo a exaltação dos seus prazeres; neste sentido, pode-se dizer que desejou as perseguições, embora suportadas com indignação. Era brincar com o
fogo escolher o domingo de Páscoa para atrair à sua casa de Arcueil a mendiga Rose Keller; chicoteada, aterrorizada, mal presa, ela fugiu nua, provocando um escândalo que Sade teve de pagar, com duas breves detenções.
            Durante os três anos de exílio — entremeados de alguns períodos de serviço — que ele passou então nas suas terras de Provença, pareceu ajuizado; desempenhou conscienciosamente o papel de castelão e de marido: dá dois filhos à esposa, recebe a homenagem da comunidade de Saumane, cuida do seu parque, lê, faz representar comédias no seu teatro, uma das quais de sua autoria; todavia é mal recompensado por esta vida edificante: em 1771 prendem-no por dívidas. Solto, arrefece o zelo virtuoso; seduz a jovem cunhada, por quem parece ter tido, durante curto lapso de tempo, uma inclinação bastante sincera: professa, virgem, irmã de sua esposa, todos esses títulos emprestam à aventura um sabor picante. Apesar disso, vai procurar em Marselha outras distrações, e em 1772 “o caso dos bombons cantaridados” assume proporções imprevistas e terrificantes; enquanto foge para a Itália com a cunhada, é condenado a morte por contumácia, bem como seu criado Latour, e ambos são queimados em efígie na Praça de Aix. A jovem refugia-se num convento na França, onde acabará seus dias; ele enterra-se na Sabóia; apanhado e encarcerado na prisão de Miolans, a esposa ajuda-o a fugir mas, desde então, é um homem acuado. Quer percorrendo as estradas da Itália, quer escondido em seu solar, compenetra-se de que nunca mais lhe será permitida uma existência normal. De vez em quando, leva a sério seu papel senhorial; como um grupo de comediantes se instalasse nas suas propriedades para nelas representar O marido corno, espancado e satisfeito, irritado talvez por esse título, manda rasgar todos os cartazes por “escandalosos e atentatórios às liberdades da Igreja”; expulsa do seu domínio um certo Saint-Denis — contra o qual alimentava agravos — declarando: “Tenho direito de expulsar de minhas terras as pessoas que não têm eira nem beira”. Estes lances de autoridade não bastam para distraí-lo; tenta realizar o sonho que obsedará seus livros: na solidão do castelo de La Coste, instala um serralho dócil aos seus caprichos; com a cumplicidade da marquesa, reúne ali diversos criados bonitos, um secretário iletrado, mas de presença agradável, uma cozinheira e uma criada de quarto apetitosas, além de duas moçinhas fornecidas por cafetinas. Porém, o castelo de La Coste não é a inacessível fortaleza das Cent vingt lournées; a sociedade espreita-o. As moçinhas fogem, a camareira retira-se para dar à luz um filho cuja paternidade atribui ao marquês, o pai da cozinheira alveja Sade com um tiro de pistola, o lindo secretário é reclamado pelos pais. Só Renée-Pélagie se conforma exatamente com o papel que lhe consignou o marido; todos os demais reivindicam suas próprias existências e Sade compreende mais uma vez que lhe não é possível fazer desse mundo demasiado real o seu teatro.
            Esse mundo não se limita a frustrar-lhe os sonhos: repudia-o. Sade foge para a Itália, porém Mme de Montreuil, que lhe não perdoa a sedução da filha mais nova, espreita-o; voltando à França, arrisca-se a ir a Paris, e a dama aproveita a ocasião para fazê-lo encarcerar no castelo de Vincennes em 13 de fevereiro de 1777. De volta a Aix, após o julgamento, refugia-se em La Coste onde ensaia, sob o olhar resignado da esposa, um idílio com Mlle Rousset, sua governanta. Mas a 7 de novembro de 1778 está de novo em Vincennes, enjaulado, como uma fera, atrás de dezenove portas de ferro.
            Começa então outra história; durante onze anos de cativeiro — primeiro em Vincennes, depois na Bastilha — agoniza um homem e nasce um escritor. O homem é logo quebrantado;
reduzido à impotência, ignorando quanto tempo vai durar sua detenção, seu espírito extravia-se em delírios interpretativos: por meio de cálculos minuciosos, sem base em qualquer dado, tenta adivinhar qual será o termo do seu cativeiro. Intelectualmente refaz-se depressa, como prova sua correspondência com Mme de Sade e com Mlle Rousset. Mas a sua carne abdica; ele procura nos prazeres da mesa uma compensação para o jejum sexual; conta o seu criado Carteron que na prisão “fumava cachimbo como um corsário” e “comia por quatro”. Exagerado em tudo, segundo a sua própria confissão, torna-se bulímico; manda vir pela esposa enormes cestos de alimento e a gordura apodera-se dele. Em meio às suas queixas, acusações, justificações e súplicas, diverte-se ainda um pouco a torturar a marquesa: finge-se ciumento, atribui-lhe negras maquinações, e quando ela o visita censura-lhe as vestimentas, exige-lhe aparência mais austera. Todavia, essas distrações são raras e muito tênues. A partir de 1782 é só à literatura que vai pedir o que a vida não mais lhe concede: a agitação, o desafio, a sinceridade e todas as alegrias da imaginação. E mesmo nisso, é exagerado: escreve do mesmo modo que come, com frenesi. Ao Diálogo entre um padre e um moribundo sucedem-se as Cent vingt Journées de Sodome, os lnfortunes de la vertu, Aline et Valcour. Segundo o catálogo de 1788, teria escrito então trinta e cinco atos de teatro, meia dúzia de contos, a quase totalidade de Portefeuille d’un homme de lettres; e sem dúvida a lista não está completa.
            Quando recobra a liberdade, na sexta-feira santa do ano de 1790, Sade pode esperar, e espera, que uma nova era se abra para ele. A esposa reclama a separação; os filhos — um dos quais se prepara para emigrar e outro é cavaleiro de Malta — são-lhe estranhos, o mesmo sucedendo com a “rude camponesa” que tem por filha. Liberto da família procurará integrar-se, ele a quem a antiga sociedade tratara como pária, naquela que acaba de lhe devolver a dignidade de cidadão. Representam-se publicamente as suas peças, Oxtiern obtém mesmo grande êxito. Inscrito na Section des Piques, é nomeado seu presidente e redige com entusiasmo mensagens e petições. Mas seu idílio com a Revolução dura pouco. Sade conta cinqüenta anos, um passado que o torna suspeito, um temperamento de aristocrata que seu ódio à aristocracia não abrandou; e ei-lo de novo dividido. É republicano, e teoricamente exige mesmo um socialismo integral e a abolição da propriedade: mas empenha-se em conservar seu solar e suas terras; esse mundo a que tenta adaptar-se é ainda um mundo demasiado real, cujas brutais resistências o ferem; e é um mundo redigido por essas leis universais que ele considera abstratas, falsas e injustas; quando em nome delas a sociedade se permite o assassínio, o marquês retira-se com horror. Compreende-o muito mal quem se admira de que, em vez de solicitar um posto de comissário do povo na província, que lhe permitiria torturar e matar, ele se tenha desacreditado pelo humanismo; supor-se que “amava o sangue” como se ama a montanha e o mar? “Derramar sangue” era um ato cuja significação podia, em certas circunstâncias, ser para ele motivo de exaltação; mas o que, sobretudo, pedia à crueldade era que ela lhe revelasse como consciência e liberdade, ao mesmo tempo em que como carne, indivíduos singulares e sua própria existência; julgar, condenar, ver morrer a distância pessoas anônimas, a isso se recusa. O que ele mais odiou na velha sociedade foi a pretensão desta, e da qual ele foi vítima, de julgar e punir: de modo algum poderia desculpar o Terror. Quando o homicídio se torna constitucional, passa a ser apenas a odiosa expressão de princípios abstratos: torna-se desumano. Eis por que, nomeado membro do júri de acusação, Sade engendra quase sempre desculpas em favor dos réus; recusou-se a prejudicar em nome da lei Mme de Montreuil
e sua família quando a sorte de todos estava em suas mãos; foi mesmo obrigado a demitir-se da função de presidente da Section des Piques; escreveu a Gaufridy: Julguei-me compelido a passar a cadeira ao meu vice-presidente; eles queriam que eu cometesse um horror, uma desumanidade: nunca assenti. Em dezembro de 1793 foi encarcerado sob a acusação de “moderantismo”; solto trezentos e setenta e cinco dias depois, escreve com tédio: Minha detenção nacional, com a guilhotina debaixo dos olhos, fez-me cem vezes mais mal do que teriam feito todas as bastilhas imagináveis. É que, com essas grosseiras hecatombes, a política demonstra com excessiva evidência considerar os homens uma simples coleção de objetos, ao passo que Sade exige, ao redor de si, um universo povoado de seres singulares; o “mal” de que ele fizera seu refúgio desvanece-se quando o crime é reivindicado pela virtude; o Terror, que é exercido em sã consciência, constitui a mais radical negação do mundo demoníaco de Sade.
            “O excesso de Terror embotou o crime”, escreveu Saint-Just. Não é apenas porque Sade está velho, gasto, que sua sexualidade adormeceu; a guilhotina assassinou a negra poesia do erotismo; para deleitar-se em humilhar a carne, exaltá-la, era preciso valorizá-la; ela não tem mais sentido nem valor quando os homens podem ser tranqüilamente tratados como coisas; Sade ainda saberá ressuscitar em seus livros a experiência passada; e reavivar seu antigo universo; porém não mais acredita nele em seu sangue e em seus nervos. Nada há de físico na ligação que o prende àquela a quem chama Sensible. Seus únicos prazeres eróticos, tira-os da contemplação de pinturas obscenas inspiradas em Justine com que ornamenta um gabinete secreto; recorda-se; mostra-se, porém, incapaz de qualquer arrebatamento e o simples encargo de viver acabrunha-o; liberto dos quadros sociais e familiares em que sufocava, mas cuja sólida moldura lhe era necessária, arrasta-se da miséria para a doença; vendidos com prejuízos os bens de La Coste, depressa lhes devorou o produto; refugiado em casa de um rendeiro, e depois num celeiro com o filho de Sensible, ganhando quarenta soldos por dia como empregado no espetáculo de Versalhes, o decreto de 28 de junho de 1799 que proíbe riscá-lo da lista dos emigrados onde ele fora inscrito quando nobre, arranca-lhe estas palavras desesperadas: A morte e a miséria, eis a recompensa que obtenho pelo meu intransigente apego à República. Recebe, entretanto, um certificado de residência e de civismo, e em dezembro de 1799 representa em Oxtiern o papel de Fabrício, mas já no começo de 1800 está no hospital de Versalhes, “morrendo de fome e de frio” e ameaçado de prisão por dívidas. É tão desgraçado no mundo hostil dos assim chamados livres, que seria lícito perguntar se ele não preferiu voltar à solidão e à segurança da prisão; podemos pelo menos dizer que, para ter a imprudência de fazer circular Justine, e a loucura de publicar Zoloé onde ataca Josefina, Mme Tallien, Tallien, Barras e Bonaparte, era necessário que a idéia de uma nova reclusão lhe não repugnasse demais. Secreto ou confesso, seu desejo é satisfeito; ei-lo em 5 de abril de 1801 encarcerado em Sainte-Pélagie, e é aí, e depois em Charenton — onde o acompanhará Mme de Quesnet que consegue um quarto próximo do seu, fazendo-se passar por sua filha — que terminará os seus dias.
            Naturalmente, tão logo é preso e durante anos, Sade protesta e agita-se; mas ao menos pode dedicar-se outra vez e com displicência à paixão que substituiu nele a do gozo: escrever. Nunca parou. Ao sair da Bastilha a maior parte dos seus papéis perdeu-se, e ele julgou destruído o manuscrito das Journées de Sodome — um rolo de doze metros que escondera cuidadosamente e foi salvo, sem que ele o soubesse. Depois da Philosophie dans le boudoir, escrita em 1795, compôs nova súmula: a versão inteiramente desenvolvida e modificada de Justine, seguida de Juliette,
que apareceu, renegada por ele, em 1797; publicamente mandou editar os Crimes de l’Amour. Em Sainte-Pélagie absorve-se numa obra imensa em dez volumes: Les Journées de Florabelle ou la Nature dévoilée; e cumpre atribuir-lhe também, embora o livro não tenha aparecido com seu nome, os dois volumes de La marquise de Canges.
            É sem dúvida porque, daí em diante, o sentido existência reside definitivamente no seu trabalho de escritor, que Sade, em sua vida quotidiana, apenas deseja a paz. Passeia com Sensible nos jardins do asilo, escreve e promove a representação de comédias para os doentes: aceita compor um improviso para celebrar uma visita do arcebispo de Paris; no domingo de Páscoa distribui pão bento e recolhe esmolas na igreja da paróquia. Seu testamento prova que não renegou nenhuma de suas convicções; mas estava cansado de lutar. “Era polido até a obsequiosidade — diz Nodier — afável até a unção e... falava respeitosamente de tudo o que se respeita.” Segundo Ange Pitou, a idéia da velhice e da morte causava-lhe horror. “Aquele homem empalidecia à idéia da morte e desmaiava ao ver os seus cabelos brancos.” Morreu, contudo, serenamente, vitimado a 2 de dezembro de 1814 por “uma obstrução pulmonar em forma de asma”.
            Da dolorosa experiência que foi sua vida, o traço mais relevante é que entre os demais homens e ele esta lhe não revelou nenhuma solidariedade. Nenhum empreendimento comum ligava entre si os últimos rebentos de uma nobreza decadente; Sade povoou a solidão a que o condenava o nascimento com jogos eróticos tão exagerados que seus pares se voltaram contra ele; quando um novo mundo despontou, arrastava atrás de si um passado pesado demais: um desacordo consigo mesmo, suspeito aos outros, esse aristocrata obcecado por sonhos de despotismo não podia sinceramente aliar-se à burguesia ascendente; embora a acuse da opressão em que o povo é mantido, este é-lhe todavia estranho; não pertence a qualquer das classes cujo antagonismo denuncia, é de si próprio o único semelhante. Se sua formação afetiva fosse diferente, talvez ele pudesse contrariar esse destino; mas, durante toda vida, surge como um egocêntrico inveterado; sua indiferença pelos acontecimentos exteriores, suas obsedantes preocupações de dinheiro, as cautelas maníacas de que cerca suas devassidões, o delírio interpretativo esboçado em Vincennes e o aspecto esquizofrênico de seus sonhos revelam um temperamento radicalmente introvertido. Esta coincidência apaixonada consigo mesmo, se porventura lhe marcou limites, deu, por outro lado, à sua vida o caráter exemplar que nos leva a interrogá-lo hoje.
           Sade fez do erotismo o sentido e a expressão de toda a sua existência: não é, portanto, curiosidade ociosa tentar especificar-lhe a natureza. Dizer com Maurice Heine que ele tudo experimentou e tudo amou, é escamotear o problema; e a palavra algolagnia pouco nos adianta para a compreensão de Sade; ele tinha evidentemente uma idiossincrasia sexual bem definida, mas não é fácil apreendê-la; seus cúmplices e vítimas calaram-se; apenas dois escândalos ruidosos ergueram, rapidamente, a cortina atrás da qual se esconde habitualmente a devassidão; seus diários e memórias perderam-se, suas cartas são prudentes, e nos livros ele inventa-se mais do que se revela. Concebi tudo o que se pode conceber nesse gênero, mas naturalmente não fiz tudo o que concebi nem com certeza o farei jamais, escreveu ele; não foi sem motivo que se comparou à Psychopathologia Sexualis de Krafft-Ebing e ninguém pensaria em imputar a este todas as perversões que ele cataloga; do mesmo modo Sade estabeleceu sistematicamente, de acordo com as receitas de uma espécie de arte combinatória, um repertório das possibilidades sexuais do
homem: é certo que não as viveu todas nem sequer as sonhou em sua própria carne. Não só conta coisas demais, como na maioria das vezes conta mal. Seus relatos se parecem com as gravuras que ilustram Justine e Juliette na edição de 1797: a anatomia e as posições dos personagens são desenhadas com um realismo minucioso, mas a serenidade desajeitada e monótona dos rostos tornam perfeitamente irreais suas horríveis bacanais; através das frias orgias que o autor concerta é difícil discernir uma confissão viva. Contudo, há em seus romances situações que ele trata com especial complacência, testemunhando por alguns dos seus heróis uma simpatia toda particular; a Noirceuil, Blangis, Gernande e, sobretudo, a Dolmancé ele emprestou muitos de seus gostos e idéias. Por vezes também numa carta, num incidente, no rodeio de um diálogo, irrompe uma frase imprevista e viva que não é o eco de qualquer voz estranha. São essas cenas, esses heróis e esses textos privilegiados que cumpre interrogar.
            Popularmente, sadismo significa crueldade; fustigações, sangrias, torturas, mortes: o primeiro traço que fere na obra de Sade é realmente o que a tradição associou ao seu nome. O episódio de Rose Keller no-lo mostra chicoteando sua vítima com disciplinas e uma corda nodosa, e sem dúvida picando-a de canivetadas e derramando-lhe cera nas escoriações; em Marselha saca da algibeira um chicote de tiras de pergaminho com alfinetes entortados nas pontas e pede que lhe tragam varas de urze; em toda a sua conduta com a esposa manifesta evidente crueldade mental. De resto, exprimiu com abundância do prazer que se pode experimentar fazendo sofrer os outros; mas, quando se contenta em reeditar a clássica doutrina dos espíritos animais, esclarece-nos pouco: Trata-se, apenas, de abalar a massa dos nossos nervos pelo choque mais violento possível; ora, não há dúvida de que a dor atuando muito mais intensamente que o prazer, os choques resultantes sobre nós dessa sensação produzida nos outros serão essencialmente de uma vibração mais forte. Sade não dissipa o mistério por que a violência de uma vibração se torna consciência voluptuosa. Felizmente, esboça alhures explicações mais sinceras. O fato é que a intuição original, a partir da qual se elaborou toda a sexualidade, e, portanto, toda a ética de Sade, é a identidade fundamental entre o coito e a crueldade. Seria a crise de voluptuosidade uma espécie de raiva se a intenção desta mãe do gênero humano não residisse em ser o tratamento do coito o mesmo da cólera? Qual é o homem bem constituído... que não deseja... molestar o seu gozo, então? Na descrição que nos dá do Duque de Blangis à beira do orgasmo, devemos sem dúvida ver uma transposição para o modo épico dos costumes do autor: Gritos pavorosos, atrozes blasfêmias lhe escapavam do peito inchado, seus olhos pareciam despedir chamas, espumava, relinchava..., chegava mesmo a estrangular. O próprio Sade, de acordo com o depoimento de Rose Keller, “se pôs a dar gritos agudos e medonhos” antes de cortar as cordas que imobilizavam sua vítima. A carta “Baunilha e manilha” confirma que ele experimentou o orgasmo como uma crise semelhante à epiléptica, agressiva e assassina como a raiva.
            Como se explica esta singular violência? Tem-se perguntado se de fato Sade não seria sexualmente débil; muitos dos seus personagens — Gernande entre outros, tão do seu agrado — são mal servidos, têm grande dificuldade na ereção e na ejaculação; provavelmente Sade conheceu esses pavores; mas é o excesso de devassidão que parece tê-lo levado a essa semi-impotência, que é também o caso de numerosos dos seus libertinos; entre estes, aliás, muitos são bem dotados e Sade alude com freqüência ao vigor do próprio temperamento. Pelo contrário, a aliança de apetites ardentes com um “isolismo” afetivo radical é que se me afigura a chave do seu erotismo.
            Desde a adolescência até suas prisões, Sade conheceu sem dúvida de maneira premente, até mesmo obsedante, as solicitações do desejo; em compensação há uma experiência que ele parece absolutamente ignorar: a da perturbação. Nunca a voluptuosidade surge em seus relatos como esquecimento de si, delíquio, abandono; comparem-se, por exemplo, as efusões de Rousseau com as frenéticas blasfêmias de um Noirceuil, de um Dolmancé, ou na Religiosa de Diderot as emoções da Superiora com os prazeres brutais das tríbades de Sade. No herói sádico, a agressividade do macho não é atenuada pela comum metamorfose do corpo em carne; nem um momento ele se perde em sua animalidade: permanece tão lúcido e tão cerebral que, em vez de o perturbarem em seus arrebatamentos, os discursos filosóficos são para ele um afrodisíaco. Naquele corpo frio, tenso, rebelde a todo enfeitiçamento, concebe-se que o desejo e o prazer se desencadeiem em crise furiosa: fulminam-no como uma espécie de acidente orgânico em vez de constituírem uma atitude vivida na unidade psicofisiológica do indivíduo. Graças a esse exagero, o ato sexual cria aquela ilusão de gozo soberano que o torna aos olhos de Sade o prêmio incomparável; mas falta-lhe uma dimensão essencial cuja ausência o sadismo se esforçará por compensar. Pela perturbação, a existência é empreendida em si e no outro ao mesmo tempo como subjetividade e passividade; através dessa unidade ambígua os dois comparsas se confundem; cada qual fica liberto da sua própria presença e atinge uma comunicação imediata com o outro. A maldição que pesa sobre Sade — e que só sua infância nos poderia explicar — é esse autismo que o impede de jamais se esquecer e de jamais realizar a presença de outrem. Se ele houvesse sido de temperamento frio, nenhum problema teria surgido; mas há instintos que o lançam para esses objetos estranhos aos quais é incapaz de se unir: precisa inventar maneiras singulares de apreendê-las. Mais tarde, quando seus desejos se embotarem, continuará a viver nesse universo erótico que pela sensualidade, pelo tédio, pelo desafio e pelo ressentimento se tornou o único válido a seus olhos: e suas manobras terão por fim, então, provocar a ereção e o orgasmo. Porém, mesmo no tempo em que estes lhe eram fáceis, Sade necessitava de rodeios para dar à sua sexualidade a significação que nela se esboçava sem chegar a completar-se: a evasão de sua consciência para sua carne, a apreensão do outro como consciência através da carne.
            Normalmente, é pela vertigem do outro feito carne que cada qual se enfeitiça em sua própria carne. Se o indivíduo permanece fechado na solidão da sua consciência, escapa a essa perturbação e apenas consegue unir-se ao outro por meio de representações; um amante cerebral e frio espia avidamente o gozo da amante, e necessita afirmar-se como autor dele por não dispor de outro meio de atingir sua própria condição carnal; podemos qualificar de sádica esta conduta que compensa a separação por uma tirania refletida. Sade sabe, como vimos, que infligir o prazer pode ser um ato agressivo, e seu despotismo tomou por vezes esse aspecto; mas ele não o satisfaz. Em primeiro lugar repugna-lhe essa espécie de igualdade que cria uma voluptuosidade comum: Se os objetos que nos servem gozam, ei-los desde logo muito mais preocupados consigo mesmo do que conosco, e o nosso gozo, portanto, contrariado. A idéia de ver outro gozar como ele, leva-o a uma espécie de igualdade que prejudica os indizíveis encantos que o despotismo proporciona então. E, de maneira ainda mais categórica, declara: Todo o gozo partilhado se enfraquece. Além disso, as sensações agradáveis são demasiado benignas; é dilacerada e sangrenta que a carne se revela como carne da maneira mais dramática. Nenhuma espécie de sensação é mais ativa e mais incisiva que a da dor: suas impressões são firmes. Mas, para que através dos sofrimentos infligidos eu me torne também carne e sangue, é necessário que na passividade do outro eu reconheça minha própria condição, portanto que uma liberdade e uma consciência o habitem. O libertino seria realmente digno de lástima se agisse sobre um objeto inerte que nada sentisse. Eis por que as contorções e queixumes da vítima são indispensáveis à felicidade do carrasco: a ponto de Verneuil cobrir a esposa com uma espécie de touca que lhe ampliava os gritos; em sua revolta o objeto torturado afirma-se como meu semelhante e eu atingi, por seu intermédio, aquela síntese do espírito e da carne que a princípio se recusara.
             Se o fim almejado é ao mesmo tempo escapar de si próprio e descobrir a realidade das existências alheias, há ainda outro caminho que se abre: fazer-se molestar por outrem. Sade não o ignora de modo algum e usa em Marselha chicotes e vergastas, tanto para flagelar como para se fazer flagelar; trata-se, sem dúvida, de uma das suas práticas mais comuns e todos os seus personagens se fazem alegremente chicotear: Ninguém duvida hoje de que a flagelação tenha um efeito decisivo na restauração do vigor extinto pelo excesso de voluptuosidade. Há outra maneira ainda de realizar a passividade: em Marselha, Sade faz-se sodomizar por seu criado Latour, que parece muito acostumado a prestar-lhe esse gênero de serviço; seus heróis imitam-no à porfia; e ele declarou abertamente, nos termos mais vivos, que o auge do prazer se alcança combinando a sodomia ativa e passiva. É essa a perversão de que fala com maior freqüência e agrado, até mesmo com apaixonada veemência.
            Para quem gosta de classificar os indivíduos com etiquetas bem definidas, propõem-se desde logo duas perguntas: Sade seria sodomita? Seria no fundo masoquista? No que concerne à sodomia, seu aspecto físico, o papel desempenhado por seus criados, a presença em La Coste do lindo secretário iletrado, a enorme importância que em seus escritos concede a essa fantasia e o ardor de suas justificativas, tudo confirma ser esse um dos aspectos essenciais da sua sexualidade. Sem dúvida as mulheres desempenharam grande papel tanto em sua vida como em sua obra; ele freqüentou numerosas prostitutas, manteve a Beauvoisin e outras amantes de menor importância, seduziu a cunhada, reuniu mulheres e moçinhas no solar de La Coste, flertou com Mlle Rousset e acabou seus dias ao lado de Mme Quesnet, sem falar dos laços impostos pela sociedade, embora alterados a seu modo, que o uniam a Mme de Sade. Porém, que relações teve com elas? É de notar que nos dois únicos testemunhos recolhidos sobre sua atividade sexual não se percebe que Sade tenha “conhecido” normalmente suas companheiras; no caso de Rose Keller saciou-se chicoteando-a, mas não lhe tocou; à prostituta de Marselha propôs deixar-se “conhecer por trás” pelo seu criado, ou então por ele; como a mulher recusasse, limitou-se a alguns contactos, enquanto se fazia “conhecer” por Latour. Seus personagens divertem-se de bom grado em deflorar moçinhas: esta violência sangrenta e sacrílega lisonjeia a imaginação de Sade; mas, mesmo quando pervertiam uma virgem, preferiam, no mais das vezes, tratá-la como a um rapaz do que fazer correr seu sangue; vários dos seus personagens manifestam profunda repugnância pela “frente” das mulheres; outros são mais ecléticos, mas não deixam dúvidas sobre suas preferências. Sade jamais gabou essa parte do corpo feminino que As Mil e Uma Noites tão jovialmente celebram; manifesta apenas desprezo pelos pobres efeminados que possuem normalmente suas esposas. Teve filhos com a mulher, mas já vimos em que condições; e dadas as singulares farras a que se entregava em La Coste, quem prova que ele próprio tenha engravidado Nanon? Naturalmente, não poderíamos atribuir a Sade as opiniões que professam em seus romances os pederastas especializados; mas o argumento que ele põe na boca do bispo das Journées de Sodorne está bastante próximo da sua alma para que o possamos considerar uma confissão; no que respeita ao prazer, diz ele: O rapaz é muito melhor que a moça; considerai-o pelo lado do mal, que é quase sempre o verdadeiro atrativo do prazer; o crime parecer-vos-á maior com um ser inteiramente da vossa espécie do que com um que o não é, e desde esse momento o gozo será dobrado. Pouco importa que Sade tenha escrito à esposa que o seu único erro foi amar demais as mulheres; trata-se de carta oficial e hipócrita; e é por uma dialética romanesca que ele lhes dá em seus livros os papéis mais triunfantes: a maldade estabelece nelas impressionante contraste com a doçura tradicional do seu sexo; quando superam pelo crime sua abjeção natural, demonstram, com mais espalhafato que os homens, que nenhuma situação poderia impedir a explosão de um temperamento audacioso; e se imaginariamente se tornam os carrascos mais magníficos, é porque na realidade são vítimas natas: servis, lamurientas, mistificadas, passivas, através de toda a obra salientam o desprezo e a repugnância que na verdade causavam ao autor. Seria a mãe que Sade detestava nelas? Podemos também perguntar se o marquês não odiaria esse sexo por considerá-lo não o seu complemento, mas o seu duplo, e do qual nada podia receber; seus grandes celerados têm mais calor e vida que seus outros heróis, não só por motivos estéticos, mas porque lhe são mais próximos. Não creio de modo algum, que esteja retratado, como se pretendeu, na choramingas Justine; mas Juliette, que sofreu os mesmos tratos que a irmã em seu orgulho e prazer, retrata-o certamente. Sade sente-se mulher e ofende-o nas mulheres não serem o macho que ele deseja: à maior e mais extravagante de todas, a Durand, dota-a de um clitóris gigantesco que lhe permite comportar-se sexualmente como um homem.
            É impossível especificar em que medida as mulheres foram para Sade outra coisa que sucedâneos ou joguetes, mas o que estamos no direito de afirmar é que sua sexualidade era essencialmente anal. O apego de Sade ao dinheiro confirma-o; as histórias de caça a heranças representaram papel enorme em sua vida; o roubo surge em sua obra como uma conduta sexual cuja evocação basta para provocar o orgasmo. E se se recusa a interpretação freudiana da cupidez, há um fato inequívoco que Sade abertamente reconheceu: sua coprofilia. Em Marselha oferece pílulas a uma mulher dizendo-lhe “que isso a excitaria a soltar gases”, e mostra-se decepcionado por não recolher o benefício previsto; é de admirar que os dois caprichos sobre os quais tentou explicar-se mais profundamente sejam a crueldade e a coprofagia. Até que ponto se lhe entregava? Há muita distância entre as práticas esboçadas em Marselha e às orgias excrementícias das Journées de Sodome; mas a importância que concede a estas, o cuidado com que lhes descreve os ritos e sobretudo os preparativos, provam que não se trata aqui de frias invenções sistemáticas senão de fantasmas afetivos. Por outro lado, a extraordinária bulimia de Sade prisioneiro não poderia explicar-se apenas pela ociosidade; comer só pode ser um substituto da atividade erótica quando permanece como equivalência infantil entre as funções gastro-intestinais e as funções sexuais, o que certamente se perpetuou em Sade; ele liga estreitamente a orgia alimentar à orgia erótica: Não há paixões que melhor se aliem à luxúria do que a bebedeira e a glutoneria, observa; e esta confusão acaba-se nos fantasmas de antropofagia: beber sangue, engolir esperma e excrementos, comer crianças, é saciar o desejo pela aniquilação do seu objeto; o gozo não comporta troca, dom, reciprocidade ou gratuita magnificência: seu despotismo é o da avareza que opta por destruir o que não pode assimilar.
            A coprofilia de Sade tem ainda outro sentido: Se é a coisa suja que mais agrada no ato de lubricidade, quanto mais essa coisa for suja, mais deve agradar. Entre os atrativos sexuais mais evidentes, Sade coloca a velhice, a feiúra, o fedor; esta ligação da porcaria com o erotismo é nele tão original quanto a da crueldade e explica-se de maneira análoga. A beleza é demasiado simples, apreendemo-la por um julgamento intelectual que não arranca a consciência à sua solidão nem o corpo à sua indiferença; ao passo que a porcaria avilta; o homem que vive na porcaria, como aquele que fere ou se deixa ferir, realiza-se como carne; é na sua desgraça e na sua humilhação que esta se torna um abismo onde se submerge o espírito e onde se reúnem os indivíduos separados; zurzido, penetrado, esporcalhado, só desse modo Sade consegue abolir sua presença obsedante.
            Todavia ele não é masoquista no sentido popular da palavra; zomba rudemente dos homens que se tornam escravos de uma mulher. Abandono-os ao vil prazer de carregar as algemas com que a natureza lhes dá o direito de subjugar os outros; que esses animais vegetem na baixeza, que os avilta. O universo do masoquista é mágico, e daí por que é quase sempre fetichista; os objetos, sapatos, peles, chicotes — estão carregados de eflúvios que têm o poder de o transformar em coisa; e é isso o que ele explicitamente procura: abolir-se tornando-se objeto inerte. O mundo de Sade é essencialmente racional e prático; os objetos — materiais ou humanos — que servem a seus prazeres, são utensílios sem mistério, e ele vê claramente na humilhação um ardil orgulhoso; Saint-Fond, por exemplo, declara: A humilhação de certos atos de libertinagem serve de pretexto ao orgulho. E em outro ponto Sade diz do libertino que o estado de aviltamento que caracteriza aquele em que o mergulhais castigando-o, agrada-lhe, diverte-o, deleita-o e ele goza consigo mesmo o ter ido bastante longe para merecer um tratamento assim. Há, no entanto, entre essas duas atitudes um íntimo parentesco; se o masoquista quer perder-se, é para fascinar-se pelo objeto com que pretende confundir-se, e este esforço o reconduz à sua subjetividade; exigindo que o parceiro o maltrate, tiraniza-o; suas exibições humilhantes, as torturas sofridas, também humilham e torturam o outrem; inversamente emporcalhando e ferindo, o carrasco emporcalha-se e fere-se, participa dessa passividade que ele revela e, procurando apreender-se como causa dos tormentos que inflige, é enquanto instrumento, portanto como objeto que ele se atinge; estamos, portanto, autorizados a unificar estas condutas sob a designação de sadomasoquismo; resta apenas considerar que, a despeito da generalidade do termo, elas podem concretamente oferecer grande diversidade. Sade não é Sacher Masoch. O que o caracteriza especialmente é a tensão de uma vontade que se aplica a realizar a carne sem se perder nela. Em Marselha, ele faz-se chicotear, porém, de vez em quando, corre até a estufa e marca à faca, no tubo, o número de chicotadas que acaba de receber: a humilhação volve-se imediatamente em fanfarronada; sodomizado, fustiga ao mesmo tempo uma mulher; e é essa uma de suas fantasias favoritss: zurzido e penetrado, zurzir e penetrar no mesmo instante uma vítima submissa.
            Já tive ocasião de dizer que desconheceria o sentido e o alcance das singularidades de Sade, quem se limitasse a considerá-las simples dados; elas estão sempre carregadas de significação ética.
A partir do escândalo de 1763, o erotismo de Sade deixa de ser apenas uma atitude individual: é também um desafio à sociedade. Numa carta à esposa, explica como transformou seus gostos em princípios: Estes princípios e gostos foram por mim levados até o fanatismo — escreve ele — e o fanatismo é obra das perseguições dos meus tiranos. A intenção suprema que anima toda a atividade sexual é que ela se quer criminosa: crueldade ou imundície, trata-se de realizar o mal. Sade imediatamente experimentou o coito como crueldade, despedaçamento e crime; e, por ressentimento, reivindicou-lhe teimosamente o negrume; visto que a sociedade se alia à natureza para o querer criminoso em seus prazeres, ele fará do próprio crime um prazer. O crime é a alma da lubricidade. Que seria um gozo desacompanhado do crime? Não é o objetivo da libertinagem que nos move, é a idéia do mal. No prazer de torturar e injuriar uma bela mulher — escreve ele — há a espécie de prazer que dá o sacrilégio ou a profanação dos objetos oferecidos ao nosso culto. Não foi por acaso que, para chicotear Rose Keller, escolheu o domingo de Páscoa; e foi no instante em que propôs ironicamente confessá-la que a sua excitação sexual atingiu o paroxismo; não há afrodisíaco mais poderoso que o desafio ao Bem: Os desejos que experimentamos pelos grandes crimes são sempre mais violentos, que os que experimentamos pelos pequenos. Sade pratica o mal para se sentir culpado, ou escapa à culpabilidade assumindo-o? Reduzi-lo a qualquer dessas atitudes seria mutilá-lo; ele não assenta na abjeção complacente nem na imprudência estouvada; mas oscila contínua e dramaticamente, entre a arrogância e a má consciência.
            Entrevemos, assim, o alcance da crueldade e do masoquismo de Sade. Este homem que aliava a um temperamento violento — logo enfraquecido, ao que parece — um “isolismo” afetivo quase patológico, procurou um sucedâneo da perturbação através das dores sofridas ou infligidas. Sua crueldade tem um sentido muito complexo. Em primeiro lugar, surge como a realização extrema e imediata do instinto do coito, sua assunção total; afirma a radical separação do outro objeto, e do indivíduo soberano, visa a destruição ciumenta do que se não pode avaramente assimilar, mas sobretudo, mais do que a coroar impulsivamente o orgasmo, tende de maneira premeditada a provocá-lo; permite apreender através do outro a unidade consciência-carne e projetá-la em si; enfim, reivindica livremente o caráter criminoso que a natureza e a sociedade consignaram ao erotismo. Por outro lado, fazendo-se sodomizar, flagelar, aviltar, Sade chega também à revelação de si mesmo como carne passiva; sacia o desejo de autopunição e aceita a culpabilidade a que o votaram, tornando logo da humildade ao orgulho pelo desafio. Na cena sádica completa, o indivíduo dá asas à sua natureza sabendo-a má, assumindo-a agressivamente como tal; confunde a vingança com o crime e transforma este em glória.


sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Filme: Saló - os 120 dias de sodoma


BASEADO NA OBRA DO DIVINO MARQUÊS



cartaz de Saló ou os 120 Dias de Sodoma Saló ou os 120 Dias de Sodoma
(Salò o le 120 giornate di Sodoma, 1976)


» Direção: Pier Paolo Pasolini
» Roteiro: ?
» Gênero: Drama/Terror
» Origem: França/Itália
» Duração: 117 minutos
» Tipo: Longa-metragem
» Sinopse: Uma das obras mais perturbadoras da história do cinema, provoca até hoje a ira em muitos de seus espectadores. Baseado livremente em histórias de Marquês de Sade ("Círculo de Manias", "Círculo da Merda" e "Círculo do Sangue"), passa-se na Itália controlada pelos nazistas, onde quatro libertários fascistas sequestram 16 jovens e os aprisionam em uma mansão com guardas. A partir daí, eles passam a ser usados como fonte de prazer, masoquismo e morte.
» Elenco ::.
- Ator/Atriz Personagem

- Paolo Bonacelli -

- Giorgio Cataldi -

- Umberto Paolo Quintavalle -

- Aldo Valletti -

- Caterina Boratto -

- Hélène Surgère -

- Sonia Saviange -

- Elsa De Giorgi -


|| fotos ::.

foto de Saló ou os 120 Dias de Sodoma foto de Saló ou os 120 Dias de Sodoma foto de Saló ou os 120 Dias de Sodoma foto de Saló ou os 120 Dias de Sodoma

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Contos proibidos do marquês de sade


Conta a história que o Marquês de Sade foi o criador do sadismo e adorava chicotear e torturar até a morte prostitutas desavisadas. Nascido em 1740 e morto em dezembro de 1814, Donatien Alphonse François estudou em um internato jesuíta e teve uma gloriosa carreira no exército francês. Mas foram seus escritos transgressores de conteúdos sexuais quase profanos que chocaram a sociedade. Se você é do tipo que se enfurece quando Hollywood ignora o que aconteceu para recontar tudo de uma forma que faça sentido para as platéias, não vale a pena perder tempo com Contos Proibidos do Marquês de Sade (Quills, EUA-Alemanha-GB, 2000), dirigido por Philip Kaufman. Agora, se você acha que lugar de história é em documentários, e não em dramas, então há uma chance.
O marquês do filme, interpretado por Geoffrey Rush, é um artista enfurecido que se recusa a ficar calado. Internado num hospício aos cuidados do jovem religioso Coulmier (Joaquin Phoenix, em atuação impecável), empregado do doutor Royer-Collard (Michael Caine), o marquês vive feliz com a rotina da sua escrita e com sua libido sempre em alerta por causa da presença da jovem Madeleine (Kate Winslet), que contrabandeia os escritos para fora do asilo.
O resultado é uma bela encenação cinematográfica da máxima "a pena é mais poderosa do que a espada". A literatura do Marquês de Sade choca, incomoda e, principalmente, fascina. O filme se passa na França pós-revolucionária de 1794, e a primeira seqüência é inesperada - principalmente se você espera um filme cheio de safadezas - e ao mesmo tempo em que é trágica, consegue ser sublime. O tom insano e esbugalhado de um artista louco e tarado dado ao marquês é uma das boas surpresas.
Necessário fazer destaque para Kate Winslet, que dificilmente sairá da memória do espectador numa seqüência de necrofilia, contracenando com Phoenix. Os famosos quilinhos a mais que costumam ser criticados pelos adeptos do estilo mulher-cabide caíram bem para um papel numa história de época. De mais a mais, atenção também aos trejeitos do piromaníaco.
Para a decepção de muitos, Os Contos Proibidos do Marquês de Sade não é um filme com cenas carregadas de sexo e orgias - como era de se esperar de um filme sobre o marquês. É uma obra que narra a história de um artista que escreveu sobre relações carnais levadas às últimas conseqüências. É também um filme forte, violento, que fala sobre uma das formas mais abjetas de violência. A necessidade que alguns têm de calar pessoas que se expressam bem demais.

Obras do autor


Ilustração do seu livro Juliette em 1800.

Marquês de Sade

Donatien Alphonse François de Sade, o marquês de Sade, (Paris, 2 de junho de 1740Saint-Maurice, 2 de dezembro de 1814) foi um aristocrata francês e escritor libertino. Muitas das suas obras foram escritas enquanto estava em um hospício, encarcerado por causa de seus escritos e de seu comportamento. De seu nome surge o termo médico sadismo, que define a perversão sexual de ter prazer na dor física ou moral do parceiro ou parceiros. Foi perseguido tanto pela monarquia (Antigo Regime) como pelos revolucionários vitoriosos de 1789 e depois por Napoleão.

Filosofia

Além de escritor e dramaturgo, foi também filósofo de ideias originais, baseadas no materialismo do século das luzes e dos enciclopedistas. Lido enquanto teoria filosófica, "o romance de Sade oferece um sistema de pensamento que desafia a concepção de mundo proposta pelos dois principais campos filosóficos no contexto da França pré-republicana: o religioso e o racionalista".[1] Sade era adepto do ateísmo e era caracterizado por fazer apologia ao crime e a afrontas à religião dominante, sendo, por isso, um dos principais autores libertinos - na concepção moderna do termo. Em suas obras, Sade, como livre pensador, usava-se do grotesco para tecer suas críticas morais à sociedade urbana. Evidenciava, ao contrário de várias obras acerca da moralidade - como por exemplo o "Princípios da Moral e Legislação" de Jeremy Bentham- uma moralidade baseada em princípios contrários ao que os "bons costumes" da época aceitavam; moralidade essa que mostrava homens que sentiam prazer na dor dos demais e outras cenas, por vezes bizarras, que não estavam distantes da realidade. Em seu romance Os 120 Dias de Sodoma, por exemplo, nobres devassos abusam de crianças raptadas encerrados num castelo de luxo, num clima de crescente violência, com coprofagia, mutilações e assassinatos - verdadeiro mergulho nos infernos.

Obras de Sade

Duas personagens criadas por Sade foram suas idéias fixas durante décadas: Justine (que se materializou em várias versões de romance, ocupando muitos volumes), a ingênua defensora do bem, que sempre acaba sendo envolvida em crimes e depravações, terminando seus dias fulminada por um raio que a rompe da boca ao ânus quando ia à missa, e Juliette, sua irmã, que encarna o triunfo do mal, fazendo uma sucessão de coisas abjetas, como matar uma de suas melhores amigas lançando-a na cratera de um vulcão ou obrigar o próprio papa a fazer um discurso em defesa do crime para poder tê-la em sua cama. As orgias com o papa Pio VI em plena Igreja de São Pedro, no Vaticano, fazem parte da trama sacrílega e ultrajante do romance Juliette, com a fala do pontífice transformada em agressivo panfleto político: A Dissertação do Papa sobre o Crime. Sade tinha o costume de inserir panfletos político-filosóficos em suas obras. O panfleto Franceses, mais um Esforço se Quiserdes Ser Republicanos, que prega a total ruptura com o cristianismo, foi por ele encampado ao romance A Filosofia na Alcova, no qual um casal de irmãos e um amigo libertino seqüestram e pervertem uma menina, fazendo-a matar empalada a própria mãe que tenta resgatá-la no final.

Precursor da revolução sexual

Além de patrono do surrealismo, Sade é considerado um dos pioneiros da revolução sexual, com suas ideias libertárias e permissivas, e um dos primeiros a ter uma visão moderna da homossexualidade, pois defende a existência de diferentes orientações sexuais para a humanidade. Em Os 120 Dias de Sodoma, chega a satirizar o predomínio do pensamento heterossexual e a milenar condenação à morte de comportamentos considerados desviantes: no romance, ele inverte a situação e dessa vez humilha a heterossexualidade, que é punida com a morte pelas regras libertinas do castelo em que se realizam as excrementosas, sangrentas e incestuosas orgias, regadas a homossexualidade e sodomia. A obra de Sade, constantemente proibida, serviu de base para a Psychopathia sexualis de Kraft-Ebing, que classificou as parafilias e incluiu nelas o sadismo, conceito que também seria muito importante para Freud e seus seguidores, como Melanie Klein, em cuja obra o termo sadismo costuma ser exaustivamente repetido. Hoje considerado um clássico maldito, pois passou quase trinta anos preso mais por suas ideias e por seu comportamento sexual do que por seus crimes, Sade só começou a ser valorizado pelos surrealistas, no começo do século 20.

Surrealismo e psicanálise

Tanto o surrealismo como a psicanálise encamparam a visão da crueldade egoísta que a obra de Sade expõe despudoradamente. Um exemplo de influência do Marquês de Sade na arte do século 20 é o cineasta espanhol Luis Buñuel, que em vários filmes faz referências explícitas a Sade: em A Idade do Ouro, por exemplo, retrata a saída de Cristo e dos libertinos do castelo das orgias de Os 120 Dias de Sodoma. O sadismo também está explícito nas imagens mais surrealistas produzidas por Buñuel, como a navalha cegando o olho da mulher em O Cão Andaluz. Também há fortes referências sadianas em A Bela da Tarde e em Via Láctea, no qual aparece uma Cena em que Sade converte uma indefesa menina ao ateísmo. A influência de Sade pode ser notada também em autores como o dramaturgo francês Jean Genet, homossexual, ladrão e presidiário, que retoma muitos dos temas do marquês, também desenvolvidos em ambientes carcerários franceses.

Questão da homossexualidade

A questão da suposta homossexualidade de Sade ("Terá sido Sade um pederasta?") foi formulada pela escritora francesa Simone de Beauvoir no clássico ensaio 'É preciso Queimar Sade? - Privilégios'. A autora conclui pela heterossexualidade de Sade, que sempre amou mulheres tolerantes a suas aventuras, embora tivesse um comportamento sexual atípico, defendendo o coito anal e chegando a pagar criados para sodomizá-lo publicamente em suas orgias, das quais a primeira mulher, Renné de Sade, teria participado. Atualmente, estudiosos da cultura e da literatura, como o jornalista Ottaviano de Fiore, professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), compartilham a opinião de Simone de Beauvoir, creditando o comportamento e a imaginação literária do autor de 'Os 120 Dias de Sodoma' a neuroses relacionadas a parafilias, como o gosto pelo lixo e pela sujeira, que na ficção sadeana desembocam na apologia do crime e na erotização da fealdade e das mais atrozes torpezas. "A crítica que faço à pergunta de Simone de Beauvoir é que, posta em sua época, ela remete à visão de seres humanos descontínuos,isto é, não vê, como atualmente se vê, um continuum humano, mas vê um mundo repartido em que gays e outras minorias seriam descontínuos em relação a um padrão de ser humano dito normal, isto é, o gay seria o outro, que não partilharia da mesma condição humana, ponto de vista hoje considerado preconceituoso e racista, pois o padrão de ser humano mudou", afirmou Ottaviano de Fiore.

Velhice e Legado

Na velhice, já separado de Renné, sua primeira mulher, mas, como sempre, preso por causa de suas idéias e de seu comportamento libertino, foi amparado pela atriz Marie-Quesnet, que mudou-se com ele para o Hospício de Charenton. Nessa época, sob o olhar tolerante de Marie-Quesnet, enamorou-se da filha de uma carcereira que tinha 14 anos quando o conheceu. Todos esses fatos estão rigorosamente documentados por Gilbert Lely, o mais importante biógrafo de Sade, compilador de suas cartas e autor do clássico 'Vida do Marquês de Sade'. Morreu aos 74 anos, amado por duas mulheres, com quem planejava produzir peças teatrais pornográficas quando um dia saísse do hospício.


Referência bibliográfica:

Serravalle de Sá, Daniel (Dezembro, 2008). O Marquês de Sade e o Romance Filosófico do Século XVIII (artigo) (em português). Revista Eutomia, ano 1, número 2, dezembro. Pernambuco: EDUFPE, 2008, pp. 362-377.