sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

BERNARDO CARVALHO LÊ SADE:TRAIÇÃO E HORROR EM MEDO DE SADE

Rafael Zamperetti Copetti
Doutorando em Teoria da Literatura - UFSC


Resumo: Neste ensaio são discutidos pontos de contato entre a obra do Marquês de Sade e o romance
Medo de Sade, de Bernardo Carvalho, a partir de considerações de autores como Pierre Klossowski e
Georges Bataille.
Palavras-chave: Literatura brasileira; Romance; Bernardo Carvalho.
Abstract: This essay discusses some contact sites between Sade’s work and Bernardo Carvalho’s
novel Medo de Sade from considerations by authors such as Pierre Klossowski and George Bataille.
Keywords: Brazilian’s Literature; Novel; Bernardo Carvalho.
Anuário de Literatura vol. 13, n. 2, 2008, p.
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Georges Bataille, em seu texto “Sade” (BATAILLE, s/d), sugere que o momento em
que se deu a Revolução Francesa poderia ser considerado, em princípio, pobre, se observado
do ponto de vista literário. Haveria, entretanto, segundo sua proposta, uma exceção: a obra do
marquês de Sade, escritor que permaneceu grande parte de sua vida (1740 - 1814)
encarcerado em virtude de sua obra literária e filosofia libertina. Ainda no século XX,
constata, títulos como A filosofia na alcova e Justine ou história de Juliette causavam repulsa.
Bataille evidencia também que Sade e sua obra se encontram interligados com a
Revolução Francesa, pois o sentido desta está, ainda que de forma singular, contido nos
planos do marquês. Tais projetos se relacionariam com o desejo de destruição, tanto de
objetos quanto de pessoas. O fim do pensamento clássico, isto é, da epistémê que possibilitou
a gramática geral e a história natural, diz Foucault, “coincidirá com o recuo da representação,
ou, antes, com a liberação, relativamente à representação, da linguagem, do ser vivo e da
necessidade” (FOUCAULT, 2000, p. 289).
No princípio de Sade meu próximo, Pierre Klossowski (KLOSSOWSKI, 1985)
argumenta que o ato de escrever “supõe uma generalidade à qual um caso singular reivindica
adesão e, por isso, se compreende a si mesmo no domínio dessa generalidade”
(KLOSSOWSKI, 1985, p. 16) e, ainda, que o marquês de Sade entenderia tal ato desta forma
tendo em vista que o “instrumento da generalidade”, em sua época, teria sido “a linguagem
logicamente estruturada da tradição clássica”, cuja estrutura foi restabelecida através da
comunicação a normatividade da “espécie humana nos indivíduos”, a qual, por sua vez,
garantiria “a conservação e a propagação da espécie”.
Daí que, de acordo com Klossowski, a necessidade intrínseca do ser humano de se
reproduzir e de perpetuar a espécie tenha encontrado seu agente persuasivo na linguagem,
através do estabelecimento de uma “reciprocidade de persuasão que propicia a permuta das
singularidades individuais no circuito da generalidade” (KLOSSOWSKI, 1985),
reciprocidade que ocorreria apenas “segundo o princípio de identidade ou princípio de
contradição, que faz cindir a linguagem logicamente estruturada com o princípio geral do
entendimento, ou seja, a razão universal” (KLOSSOWSKI, 1985, p. 16-17).
A partir destas observações é possível perceber a origem da noção sadiana de
monstruosidade integral, conceito que parece estar relacionado ao fato de o marquês de Sade
buscar estabelecer uma contrageneralidade que permita a ocorrência de uma troca entre casos
particulares de perversão, os quais teriam como característica a inexistência de estrutura
lógica, caso a generalidade normativa seja tomada como base de comparação. E, já que Sade
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considerava a contrageneralidade um dos elementos que possibilitam a ocorrência da
perversão, Klossowski sugere que o marquês entenda esta contrageneralidade como sendo um
dos elementos que compõe a generalidade. Isto é: o ateísmo declarado pela razão normativa
estaria destinado a mesclar a generalidade existente e a contrageneralidade (KLOSSOWSKI,
1985, p.17).
Esta opção pelo modo perverso, isto é, por uma forma que não possui um conjunto de
regras e princípios estabelecidos, seria uma maneira de apontar a razão como atéia, já que
esta, a razão, perceberia que a noção de Deus modifica de forma não lógica sua própria
autonomia. E, se o cerceamento da autonomia da razão pela noção de Deus se dá de forma
ilógica, é possível entender que o conceito de Deus é, portanto, também monstruoso e, por
conseguinte, o ponto de partida dos diversos comportamentos perversos e monstruosos.
Entretanto, Klossowski chama a atenção para uma importante crítica formulada por
Sade, ainda que de forma tácita: a crítica da razão normativa, que se daria, segundo o ensaísta,
através do questionamento da maneira pela qual a razão normativa poderia vir a absorver
aspectos que vão contra a manutenção da espécie humana, já que ela própria, a razão
normativa, não “se renova em seu próprio conceito” (KLOSSOWSKI, 1985, p. 18). Ou seja, a
intenção do marquês seria tornar o pensamento independente de “toda a razão normativa
preestabelecida”. Uma possível solução para esta questão passaria pelo ateísmo integral, o
qual efetivamente poderia dar cabo da razão antropomorfa, pois o ateísmo, caso não venha a
ser reconsiderado a partir de aspectos recusados pela razão, reforçaria as instituições baseadas
em princípios antropomorfos. Em suma, o ateísmo integral denotaria a supressão do princípio
de identidade e, conseqüentemente, o banimento físico e moral da “propriedade do eu
responsável”, levando assim à prostituição universal dos seres, a qual, por sua vez, seria um
complemento da monstruosidade integral no sentido de uma ausência de normatividade.
Klossowski ressalta também que a exigência da transgressão se oporia aos efeitos do
ateísmo, pois seria ainda possível que se desse a expropriação do eu corporal e moral “no
sentido utópico do falanstério de Fourrier, baseado no ‘jogo das paixões” (KLOSSOWSKI,
1985, p. 21). Porém, caso esta “comunização” preconizada por Fourrier ocorresse, a tensão
“necessária ao ultraje” se extinguiria levando ao fim o sadismo, a não ser que fossem
propositalmente criadas regras do “jogo” a serem burladas, pois, para que ocorra a
transgressão é necessária a existência de uma ordem, ou, isto é, de regras claras a serem
seguidas.
Ainda a respeito da questão da transgressão, Klossowski sugere que a existência de
normas faria com que se desse um “acúmulo” de energia, o que fatalmente transformaria a
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transgressão em um acontecimento necessário, pois a prostituição universal apenas “tem
sentido em função da propriedade moral do corpo individual” (KLOSSOWSKI, 1985, p. 22).
E, complementa o ensaísta, afirmando a necessidade de existência da noção de propriedade
para que a prostituição não se prive daquilo que constitui seu incentivo, o ultraje.
No que tange à monstruosidade integral, que tacitamente habitaria a generalidade em
vigor, o processo apenas descrito ocorreria de forma semelhante, pois a perversão, que seria a
“insubordinação das funções de viver”, através de seus procedimentos e, sobretudo, de sua
ação principal, a prática da sodomia, obteria importância como ato transgressivo à medida que
existissem normas estabelecidas. E, ainda, se se tomasse como correta a afirmação de que a
perversão é, de certa forma, uma característica oculta do ser humano, como sugere
Klossowski, é plausível que ela possa exercer a função de uma espécie de guia de
transgressão para aqueles ditos “normais”.
Outro ponto do ensaio de Klossowski que merece destaque diz respeito à sua
advertência acerca de possíveis leituras ingênuas da obra de Sade. Para o pensador, se a
monstruosidade integral se tornasse completa, no sentido de que houvesse apenas perversos
confessos, seria possível considerar a “meta” de Sade alcançada. Isto é; o sadismo
desapareceria pelo fato de não existir mais o monstro transgressor. (KLOSSOWSKI, 1985, p.
22).
A partir daí, pode-se extrair, seguindo o raciocínio de Klossowski, que a
monstruosidade, ao contrariar regras, se afirmaria negativamente e, também, que são as
próprias normas e instituições que criam um ambiente propício para que ocorram situações de
perversão.
Uma outra observação de Klossowski, importante para a leitura de Medo de Sade, diz
respeito ao comportamento do perverso, o qual sujeitaria “seu prazer à execução de um gesto
único” (KLOSSOWSKI, 1985, p. 25); ou seja, mesmo em um meio efetivamente desregrado,
o perverso se destacaria por uma “idéia fixa determinada”. Paradoxalmente, aponta o autor,
não haveria coisa menos livre do que o “gesto perverso”, pois este gesto visa à busca por um
detalhe. Dito de outra forma, o perverso se encontraria em uma constante procura pela
realização de um feito exclusivo, o qual, pelo fato de ser único, pode ser realizado apenas uma
vez. Ou, ainda: “a existência do perverso torna-se a perpétua expectativa do instante em que
possa executar esse gesto”, o qual é um fator essencial para que o perverso se signifique, ou
seja, “executá-lo vale para a totalidade de existir” (KLOSSOWSKI, 1985, p. 25).
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A esse respeito ele [o perverso] está aquém dos indivíduos mais grosseiros; mas enquanto
essa insubordinação de uma só função só pode se concretizar e, em conseqüência, conseguir
se individuar em seu próprio caso, ele sugere à reflexão de Sade uma possibilidade múltipla
de redistribuição das funções e, normalmente, neste sentido, para além dos indivíduos
“normalmente” constituídos, abre uma perspectiva mais vasta: a da polimorfia sensível.
Salvo se, nas condições de vida da espécie humana, ele não possa afirmar a não ser
destruindo estas condições em si mesmo: O fato de existir consagra a morte da espécie
humana em seu indivíduo. Ser se confirma como suspensão da própria vida. A perversão
corresponderia assim a uma propriedade de ser alicerçada na expropriação das funções de
viver. A expropriação do próprio corpo e de outrem será, em conseqüência, o sentido dessa
propriedade de ser (KLOSSOWSKI, 1985, p. 25).
Para Sade, o principal tipo de perversão é a sodomia, pois é ela que faz com que se
perceba similitudes entre os demais casos de perversão, o que possiblitaria a formação da
monstruosidade integral. A sodomia seria ainda, no juízo de Sade, “um gesto específico de
contrageneralidade”, pois, ao golpear “a lei de propagação da espécie”, “testemunha [...] a
morte da espécie num indivíduo”. Daí que o marquês entenda a sodomia como sendo o signo
chave da perversão, pois, é o gesto perverso que “contém [o que há] de [mais] mortal para as
normas da espécie” humana (KLOSSOWSKI, 1985, p. 27).
Neste ponto retomo Bataille e destaco sua discussão acerca da relação entre Sade e seu
objeto. O autor entende que Sade foi possuído por seu objeto, pois para o marquês seria
inconcebível a separação entre obra e objeto. Isto é: para Klossowski, o método de Sade
consistiria em apontar e reproduzir seu sonho na origem de seu devaneio. (KLOSSOWSKI
apud BATAILLE, s/d, p. 102-103).
Possivelmente foi o desenvolvimento dessa questão que levou Bataille a concluir que,
ao contrário do cristão e do romântico, que respectivamente tomariam consciência de si
próprios a partir da fé em Deus e da tomada de sua “paixão como um absoluto” (BATAILLE,
s/d, p. 103), o sádico apenas perceba a si mesmo considerando o objeto que agrava seu vigor.
E qual seria o objeto do sádico? Segundo Bataille, um outro ser humano, sobre o qual
deve necessariamente ser impresso um novo modo de ser para que se torne possível dele
lograr a angústia e o desastre esperado. Portanto, o fato de se imprimir em alguém um novo
modo de ser é, necessariamente, um ato planejado, diferença fundamental, ao que parece,
entre o sádico e, talvez assim se possa dizer, “o simples sádico”, que agiria de forma
impensada.
A discussão de Nietzsche acerca do elemento inocente que compõe a maldade é útil
para uma melhor compreensão desta questão:
A maldade não tem por objetivo o sofrimento do outro em si, mas nosso próprio prazer, em
forma de sentimento de vingança ou de uma mais forte excitação nervosa, por exemplo. Já
um simples gracejo demonstra como é prazeroso exercitar nosso poder sobre o outro e
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chegar ao agradável sentimento da superioridade. Então o imoral consiste em ter prazer a
partir do desprezar alheio? É diabólica a satisfação com o mal alheio, como quer
Schopenhauer? Na natureza obtemos prazer quebrando galhos, removendo pedras, lutando
com animais selvagens, para nos tornarmos conscientes de nossa força. Saber que o outro
sofre por nosso intermédio tornaria imoral a mesma coisa pela qual normalmente não nos
sentimos responsáveis? Se não o soubéssemos, contudo, também não teríamos prazer em
nossa própria superioridade, que justamente só se pode dar a conhecer no sofrimento alheio
[...]. Em si mesmo o prazer não é bom nem mau; de onde viria a determinação de que, para
ter prazer consigo, não se deveria suscitar o desprezar alheio? Unicamente do ponto de vista
da utilidade, ou seja, considerando as conseqüências, o desprezar eventual, quando o
prejudicado ou o Estado que o representa leva a esperar punição e vingança: apenas isso,
originalmente, pode ter fornecido o fundamento para negar a si mesmo tais ações
(NIETZSCHE, 2000, p. 78-79).
No primeiro ato de Medo de Sade (CARVALHO, 2000) – o romance de Bernardo
Carvalho é dividido em dois atos –, o barão de LaChafoi encontra-se em um local que
presume ser Charenton, o hospício em que o marquês de Sade esteve internado entre 1803 e
1814, ano de sua morte, e onde costumava encenar peças teatrais com os demais internos. No
interior de uma cela, que supunha completamente escura, já que não era capaz de enxergar
ninguém, o barão dialoga com uma voz, a qual imagina pertencer ao marquês. À esta voz
LaChafoi narra, em uma espécie de prestação de contas à seu ídolo, os acontecimentos que o
levaram até lá – afinal de contas, para o barão libertino aquela voz pertencia a Sade, seu
mestre.
Sucintamente é possível dizer que o barão procura respostas junto a seu suposto
mestre para o que aconteceu de impróprio durante uma “noite de devassidão e excessos”
(CARVALHO, 2000, p.13) no castelo de Lagrange, quando os participantes – sua esposa, seu
primo, o conde de Suz e sua bela criada Martine – ingeriram uma fórmula afrodisíaca à base
de cantáridas trituradas, a qual supostamente foi prescrita pelo próprio marquês; o barão busca
respostas tendo em vista que após despertar desta noite libertina percebeu que um dos
participantes da orgia foi assassinado e, pior, além do fato de ele não conhecer qual dos três
outros participantes foi vitimado, ele próprio, então já encarcerado, estava sendo acusado de
tal crime. Ou seja, ao que parece, talvez esta voz funcione como uma espécie de regra que
regularia a ordem e o desenvolvimento de uma dada comunidade, no caso a dos libertinos e,
por conseguinte, a vida do barão.
Entretanto, é apenas no segundo e último ato do romance de Carvalho, no qual o leitor
é trazido para a contemporaneidade, que se percebe que aquela voz que em um primeiro
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momento regularia uma comunidade de libertinos impõe normas, na verdade, a um outro
corpo social, aquele ao qual pertencem os que são considerados loucos.
É então a partir da narrativa do “negro de branco ao branco de branco” (CARVALHO,
2000, p. 67) que tem início o entrelaçamento dos dois atos do romance. É atravées desta
narrativa, a do “negro de branco”, o qual poderia muito bem ter como profissão a
enfermagem, que se fica sabendo que o interno do segundo ato, um cidadão francês, seguidor
da filosofia libertina do barão de LaChafoi, que encomendou, na cidade do Rio de Janeiro, a
morte de sua esposa, também cidadã francesa, acredita ser o próprio barão.
Em suma, de acordo com o narrador, o essencial seria conhecer o caráter paradoxal do
crime e não quem foi seu autor, já que o o assassinato da mulher fora praticado para que se
tornasse possível a execução de um outro crime, que, em virtude das circunstâncias, não foi e
não poderá ser empreendido.
No entanto, creio ser relevante destacar um fragmento da caracterização do casal
envolvido no crime, fragmento este que traz à tona as regras do jogo em que os dois
personagens se envolveram.
Era um casal curioso. [...] Casaram-se numa capelinha no alto de uma colina, a coisa mais
singela, no sul da França, no vilarejo onde ele tinha nascido e onde no início do século XIX,
ao que parece, um barão organizava bacanais inspirado no marquês de Sade. Um escritor
libertino cuja filosofia máxima era a traição. Seis meses depois de casados descobriram que
ela não podia ter filhos. Perceberam que o amor não resiste ao tempo, o amor acaba, e
fizeram um pacto explícito que, de hábito, nos casamentos em geral, por ficar implícito,
termina por destruí-los. Resolveram que o melhor era estabelecer uma relação baseada na
traição e no horror. O horror no lugar do amor. Um casamento baseado num jogo de
horrores, porque, como ele mesmo vive repetindo em suas crises, o horror não morre, ao
contrário do amor. Só o horror pode manter um casamento, sob o princípio da traição,
segundo a filosofia do tal barão libertino. Cada um dos cônjuges prega uma peça no outro,
alternada e sucessivamente. O que aprenderam a chamar, numa brincadeira reservada entre
os dois, de “medo de Sade”. Uma referência ao célebre marquês, é lógico, que ao que tudo
indica tinha inspirado o barão no início do século XIX em sua filosofia tão peculiar. [...]
Quem tiver mais medo, perde. Esse era o jogo. [...] Só que o negócio durou pouco. Porque
até a traição tem suas regras, e ele trapaceou. Quis adiantar a morte, matar a mulher antes
que ela o matasse. Teve medo. E nesse jogo quem tem medo perde. Para você pode parecer
um paradoxo, e para mim também, mas ao morrer ela ganhou. Ao morrer, ela ganhou porque
deixou ele apavorado (CARVALHO, 2000, p. 68-69).
Conforme foi apontado anteriormente, Sade sugere a instituição de uma
contrageneralidade que possibilite uma troca entre casos específicos de perversão, cuja
particularidade seria a inexistência de estrutura lógica.
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A partir desta constatação é possível tecer algumas considerações a respeito da
legitimidade de uma relação conjugal baseada na traição e no horror, como é o caso daquela
mantida entre os personagens de Carvalho.
Em um primeiro momento, uma relação nestes moldes pode ser encarada como
legítima, caso se concorde com o raciocínio de Nietzsche quando sugere que seria a coerção
operada por um aparelho de estado, por exemplo, que impediria que se dessem
comportamentos fora de uma generalidade já estabelecida.
Por outro lado, se se admite que um comportamento similar seja legítimo, e se,
hipoteticamente, deixasse de existir todo e qualquer tipo de coerção em relação ao fato de que
se obtenha prazer a partir do sofrimento alheio, seria instaurada a princípio uma espécie de
desregramento total, que, por sua vez, impediria que alguém se impusesse, ou, ainda,
obtivesse prazer através do sofrimento alheio e, por conseguinte, que demonstrasse sua
superioridade sobre um outro ser.
No entanto, mesmo em uma situação como aquela reclamada por Sade, em que
haveria a ausência total de normas, seriam reinstituídas regras a serem burladas, pois, ao que
parece, para que haja a transgressão é imprescindível que se estabeleçam regras, mesmo que
estas sejam tácitas e operem sobre comunidades restritas ou ainda um número ínfimo de
pessoas.
A este respeito, é novamente possível tomar como exemplo o casal do romance de
Carvalho, que, ao manterem uma relação baseada na traição e no horror, a qual, para um olhar
externo pareceria completamente ilógica, no sentido de que não estaria baseada em regra
alguma, possuem, na verdade, entre eles, apenas, seus próprios códigos e normas, através dos
quais obtêm prazer a partir do sofrimento e do pavor do outro com o intuito de se manterem
unidos.
É possível que o próprio marquês de Sade tivesse consciência da necessidade de
existência de empecilhos como a linguagem logicamente estruturada das normas e das
instituições para que se desse a monstruosidade integral, entendida aqui como a ausência total
de normas, pois é a partir apenas do conceito de norma instituída que se percebe o que é
monstruoso, ou, em outras palavras, o que é ilógico.
Daí que a lógica do casal do romance de Carvalho pareça ilógica para quem olha de
fora, ainda que para eles, na busca incessante do prazer e da manutenção da relação, exista
uma lógica apenas por eles conhecida.
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Esta busca peculiar e incessante pelo gozo por parte dos personagens, baseada em
códigos próprios, os quais aparentemente desconsiderariam as coerções apontadas por
Nietzsche, parece manter alguma relação com a discussão a respeito do fato de Sade ter sido,
de acordo com Bataille, possuído por seu objeto, pois, ao que parece, a única forma através da
qual os personagens tomam consciência de si próprios é a obtenção do prazer a partir do
horror ao qual seu objeto, no caso um dos cônjuges, é submetido.
Para finalizar, é preciso destacar que a busca incessante da reiteração do horror, que no
entanto seria único, ou ainda, a perseguição de uma “idéia fixa”, como por exemplo a
suposição do marido em relação à frase proferida por sua esposa, obsessão que o levou a
perder o jogo, poderia ser encarada como aquilo que tornaria a existência dos personagens “a
perpétua expectativa do instante em que possa executar esse gesto” (KLOSSOWSKI, 1985, p.
25).
Referências
BATAILLE, Georges. A literatura e o mal. Trad. Sueli Bastos. Porto Alegre: L&PM, s/d.
CARVALHO, Bernardo. Medo de Sade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Trad. Salma Tannus Muchail. São Paulo:
Martins Fontes, 2000.
KLOSSOWSKI, Pierre. Sade meu próximo. Trad. Armando Ribeiro. São Paulo: Brasiliense,
1985.
NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano – Um livro para espíritos livres. Trad.,
notas e posfácio: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
SÁ, Nelson. Bernardo Carvalho vai ao teatro com Sade. Disponível em
Acesso em: 30/07/03.

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