domingo, 28 de agosto de 2011

Sade - A felicidade Libertina/ Eliane Moraes


Prefácio

Estudando uma obra complexa como a de Sade, o especialista pode ver-se tentado a encontrar seu sentido, sua coerência. Não é o que faz Eliane Robert Moraes nesse livro, e este me parece ser o seu grande mérito. Se ela buscasse pôr ordem numa produção tão vasta e por vezes desencontrada, na qual fica difícil conhecer qual a parte da obra, qual o quinhão da vida, certamente acabaria perdendo o sabor do caos com que Sade acolhe seu leitor: a desordem é, nele, importante. Algo de bastante fundamental na literatura e na arte começa a acontecer em seu tempo, que podemos resumir em duas características. Primeira, a vida, que antes se apagava e desfazia ante a obra, vai-se tornando quase tão relevante quanto esta, em artistas que certamente, como hoje, não passam de uma minoria, mas mesmo assim significativa. Faz parte, portanto, da obra sadiana a sua vida irrequieta, à beira do crime e da reclusão - como fazem parte da biografia de Sade seus livros; mais tarde, também será impossível falar de Gauguin sem a ruptura que ele efetua com o mundo bem-pensante e sua partida para Taiti, ou de Van Gogh sem a orelha cortada e o suicídio, ou de Toulouse-Lautrec sem o aleijão. Tudo isso podem ser anedotas, mas elas assumem uma importância de que não temos paralelo nos autores da era chamada clássica, ou talvez barroca; corrigindo: até o século XVIII a biografia pode em certos casos ser importante para conhecer o autor, mas ela é apenas explicativa (como no caso do jansenismo de Pascal e Racine), ao passo que em autores mais recentes ela adquire uma densidade quase comparável à da obra. Ou, melhor dizendo: ela é inquietante como a obra. E esta é, seguramente, a segunda característica que descortinamos desde Sade. A presença da vida na obra, e por vezes da obra na vida, não é de ordem neutra. Não se limita a esclarecer, a sanar pontos obscuros. Ao contrário, amplia até a desmedida o obscuro, o perturbador. Traz o espectro da loucura ou, pelo menos, o dos limites fraturados da razão. É o caso dos pintores que mencionei, como também o de Nietzsche ou o dos grandes teatrólogos escandinavos de fins do século XIX. Em suma, a vida entra em cena na obra como um elemento quase destruidor, que aparece para trazer a guerra e não a paz, para embaralhar e não para ordenar.

Se estas observações valem para a grande novidade que Sade nos proporciona - talvez o primeiro grande escritor de ficção a instaurar relações assim novas entre seus escritos e seu vivido - , compreende-se que não seja muito adequado lê-lo no intento de dar-lhe sistema. Uma tal tática terá sua utilidade, mas receio que jamais alcance o vigor de uma estratégia; que jamais consiga dar conta do que, nesse autor, é essencial. E por isso considerei muito feliz - enquanto acompanhava, como orientador, ou deveria dizer, como leitor, o belo mestrado em Filosofia que resultou neste livro - ela tomar o partido de recusar a leitura totalizante ou sistemática, para enfrentar a vasta obra sadiana quase como uma guerrilheira, elegendo cinco temas fundamentais - duas atividades e três lugares - e retraçando o que neles é essencial.

O leitor logo verá o percurso de Eliane: principiando pela viagem (a saída de si, percurso horizontal), ela passa por uma construção que é clausura (o castelo), para assim revelar que tudo é rito, é cerimônia construída - que a própria viagem e sua estase, o castelo, são cenário. Daí que o capítulo sobre o teatro se situe a meio caminho, como que dando uma chave para o tema. E a partir daí pode Eliane montar as duas grandes encenações do discurso, os dois lugares em que se teatraliza o logos filosófico: primeiro, o banquete, ocasião em que a boca recebe alimento e exala palavras; segundo, o "boudoir", como o castelo um local, porém íntimo, fechado, e que é o lar da filosofia. Nestes dois lugares discursivos, o principal tema das falas é o prazer, o da mesa, o da cama. De um trajeto no qual recorreu à análise literária, à história das idéias e até à antropologia, Eliane pode assim culminar em alguns grandes temas filosóficos, os da ética (o Mal), da estética (a construção da obra de arte), da política (os despotismos em que se associam paixão e poder) e do conhecimento (qual é o papel do filósofo).

Talvez o que mais convenha salientar aqui, porém, são alguns pressupostos que Eliane utilizou para propor esta leitura, cuidadosa e cativante. Mais que pressupostos, trata-se talvez de opções bem conscientes. Primeiro, uma extrema atenção à imagem, à materialidade do significante. É uma perspectiva que podemos dizer oposta à da transcendência. Um autor como Sade, tão peremptório em seu materialismo, provoca alguns de seus leitores, os de vocação mais espiritual, a procurar descobrir o que está por trás das imagens, como se ele estivesse, em sua blasfêmia mesma, tentando balbuciar uma carência do espírito. Pois a leitura que Eliane efetua é, já por seu modo mesmo, antagônica a essa. O que ela ressalta num banquete, por exemplo, são os alimentos, numerosos, bons, sensuais. O próprio significado que eles tenham se deve buscar, antes de mais nada, neles enquanto significantes. Não se salta a matéria, não se passa impunemente por ela.

Segundo ponto, uma grande atenção ao elemento cênico. Não apenas porque Eliane, num capítulo, que já afirmei nevrálgico, tratará do teatro em Sade: mas porque a própria base de sua leitura está numa idéia de cenários em movimento. Tudo o que ela afirma das imagens em Sade se sustenta em sua teatralização, conceito, por sinal, admiravelmente apropriado às formas sociais do Antigo Regime. Podemos resumir a teatralização em dois elementos. O primeiro é que, se não se chega a proclamar um primado do significante sobre o significado, seguramente se exclui qualquer apagamento daquele em favor de uma suposta soberania deste segundo. Melhor dizendo: a atenção ao teatral exige igual atenção às formas. Para se usar uma distinção velha e imprecisa, mas ainda assim útil, elas são fundamentais para se conhecer o conteúdo.

Já o segundo traço da teatralização reside no movimento que ela imprime às formas. Com efeito, não se trata apenas de formas, mas de cenários ou entrechos: e o fato de estarmos diante de um movimento indica muito bem o caráter produtor, ou produtivo, que é essencial à teatralização. Dizendo de outro modo, a teatralização é tudo menos uma falsidade, e é muito mais que um entretenimento. Trata-se de um procedimento no qual extrema atenção se dá ao engate entre forma e conteúdo, significante e significado, operação e espírito. Ora, é justamente esse ponto de encontro - esse ponto de produção - que permite a Eliane mostrar como um mundo, o sadiano, se produz nestas cinco formas que analisa.

Tomemos então uma destas formas, a que abre o livro: a da viagem. Eliane parte de Sade para pensar a própria história, o tempo mesmo no qual o autor escreve - e não o contrário. Isto ela faz, antes de mais nada, testando em todas as direções o acontecimento viagem. As riquezas do significante se vão, assim, explicitando, e se iluminam umas às outras. Por exemplo: a viagem é mobilidade, definição quase acaciana, quase uma tautologia; mas disto se pode implicar que seja, também, descoberta. Ela se faz, para os franceses do século XVIII, sobretudo no rumo da Itália. E se reveste de especial sentido para Sade, uma vez ele preso. Aqui temos, pois, uma definição (abordagem filosófica), uma recordação dos itinerários (ponto de vista histórico), uma contraposição entre o autor preso e suas personagens itinerantes (viés biográfico). Torna-se possível agora, a Eliane ou a seus leitores, continuar testando essas diferenças e seus confrontos. O viés biográfico é o da compensação: quanto mais preso na realidade está o nosso autor, mais solto se lança no imaginário. O ponto de vista histórico é o do contexto: a obra se ilumina estudando-se seu entorno como um elemento que concorre para explicá-la. Já a abordagem filosófica parte de uma tautologia: viagem é movimento, portanto, na boa tradição do pensamento europeu, como Eliane recorda em alusão aos portugueses da Renascença, a vida consiste em viajar.

O essencial, todavia, está em fazer funcionarem esses - e outros - registros: em exceder, assim, os seus limites. Caso se contentasse com apenas um deles, a obra de Eliane padeceria de suas limitações: ficaria presa, por exemplo, a uma duvidosa relação da vida com a obra segundo o esquema da compensação ficcional das frustrações vividas, ou a uma explicação algo contestável do texto por seu entorno, ou contexto. A multiplicação dos pontos de vista praticada por Eliane deve então ser entendida como um modo de exceder essas limitações - não pelo recurso a uma simples justaposição de procedimentos nos quais um equilibrasse as deficiências do outro, ou a um excesso barroco de quantidades que sonhassem efetuar um salto qualitativo; mas valendo-se de um olhar que, por ser o do prisma, procura dissolver a unidade do objeto, trabalhando-o em suas várias e mesmo antagônicas potencialidades.

Ainda assim, do conjunto extraem-se resultados: não nos perdemos na dispersão. O recurso ao prisma é meio, não fim, deste livro. Por isso, termino salientando duas conclusões que aprecio particularmente no trabalho de Eliane. A primeira consiste no percurso iniciático. Aqui, a autora faz excelente uso da intersecção entre a antropologia e as religiões para, jogando com idéias correlatas aos ritos de passagem e de iniciação, trabalhar em vários níveis a noção de uma mudança. A obra de Sade multiplica pontes, abismos, claustros, ilhas - lugares quer de passagem, quer de encerramento, mas que portam, todos, o sentido de uma transformação em curso, figurada pela translação espacial, e com frequência também o sentido de uma concentração que adensa as experiências novas reveladas no texto. Mas, ao mesmo tempo que na própria obra lemos esses trajetos, sucede também em nós, leitores, alguma sorte de passagem, de iniciação. O texto de Sade, apresentado por Eliane na boa, ainda que recente, tradição de um século que deu ao marquês uma popularidade e simpatia antes desconhecidas, não mais se arrasta na repetição ou monotonia de que tanto foi acusado: torna-se o veículo de uma novidade, de uma revelação leiga.

Aqui, a segunda conclusão. Apostando no materialismo de Sade, Eliane Robert Moraes pode então libertá-lo da imagem assustadora que dele construíram os séculos XVIII e XIX. Não, é certo, para compor um marquês bem-pensante, por exemplo, o apóstolo precoce e incompreendido da liberdade sexual. Negar-lhe a identificação com o Mal não significa reduzi-lo a um casto e quem sabe castrado anjo de presépio. Mas era preciso afastar os preconceitos, sair do plano do bem e do mal, para apreender o vigor sensual de uma obra como a de Sade. Dizendo de outro modo, é a perspectiva resolutamente materialista de Eliane que abre caminho para uma leitura que fará mais justiça ao erotismo sadiano do que as leituras assustadas do passado. Para a ficção do marquês expor toda a sua sensualidade, era pois necessário esposar os ritmos de seu pensamento; sem o materialismo, que é de sua filosofia, não será legível o erotismo, que é de sua fantasia. Um repertório de alguns temas seletos assim se mostra especialmente rico para se ingressar no pensamento e na ficção de Sade. E, para terminar numa nota pessoal, minha impressão de leitor que teve o privilégio de acompanhar a escrita deste livro: raras vezes, acredito, o prazer que se tem em ler deverá tanto ao prazer que teve a autora em escrever.

Sete Praias, março de 1994.

RENATO JANINE RIBEIRO

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