quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Sade e suas obras: eróticas ou pornográficas?


 Por Clarilene Medeiros

No contexto sócio-cultural do século XVIII, a leitura surgiu como um instrumento para a formação de uma identidade extremamente individual, sem fazer referência ao passado ou ausência de passado de sua família, e também funcionava como forma de agrupar as classes médias urbanas (em torno dos gabinetes e sociedades de leitura). Alguns dos livros dessa época tinham um caráter especial: eram proibidos. No entanto, esses livros não eram considerados literatura pornográfica e proibidos somente porque atentavam contra os bons costumes. O nome dado a eles era bastante particular: livros filosóficos. Segundo Robert Darnton, ao discutir as implicações políticas dessa forma de literatura, havia um alto preço a ser pago por esses autores desajustados diante do esprit de finesse predominante nos salões parisienses:

A vida dos subliteratos era dura e cobrava um tributo psicológico; as “fezes da literatura” não enfrentavam apenas o fracasso, mas também a degradação – e tinham de fazê-lo sozinhas. O fracasso gera solidão, e as condições do underground eram adequadíssimas para isolar seus habitantes. (...) Em suas mansardes de quarto ou quinto andar, antes que Balzac as romantizasse, os philosophes injustiçados compenetravam-se de que eram mesmo o que Voltaire deles dissera: Lê canaille de la littérature [a canalha literária].  Como conviver com tão dura constatação? (DARNTON, 1987, p. 37-8)

 O termo pornográfico não existia nesse momento, o nome dado a esse tratamento cultural do sexo era o de libertinagem. Segundo Raymond Trousson, em Romance e libertinagem no século XVIII na França, libertinagem caracterizava tanto uma escrita, quanto um comportamento engajado com a blasfêmia e mais ainda com “(...) uma escandalosa liberdade de costumes baseada na negação do pecado (...) e com o apelo à comunhão dos bens” (In: NOVAES, 1996, p. 165).  Pornografia é uma invenção do século XIX, profundamente ligada ao desenvolvimento da cultura de massa, dos meios de comunicação e da pequena burguesia. Na época de Sade, seus livros não eram realmente entendidos como “pornográficos”. Escandalosos, sim, mas muito mais por causa de seu conteúdo iconoclasta do que por causa de representações explícitas de sexo. Essas últimas eram, afinal de contas, lugar comum na literatura até então, e não eram particularmente chocantes senão para os leitores mais pudicos.
Para a filósofa e escritora Simone Beauvoir (1961), a filosofia lúbrica e radical em torno da noção de liberdade, de Sade, precedia o existencialismo em mais de um século. Há quem o veja, ainda, como precursor do estudo do foco da sexualidade que permeia toda a psicanálise de Sigmund Freud. Após mais de dois séculos de sua morte, o marquês recebeu dos surrealistas o apelido de “divino”, entrando para o hall de gênios da literatura e da filosofia. Como coloca Eliane Moraes, em Sade: o crime entre amigos, os textos do marquês possuem “(...) relações estreitas com a sensibilidade vivida por seus contemporâneos” (In: NOVAES, op. cit., p. 250).

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