quarta-feira, 16 de junho de 2010

Entrevista com Giannatasio - estudioso de Sade

Cartas aprofundam enigma do marquês encarcerado


Professor da UEL lança livro com cartas do Marquês de Sade, escritas na prisão de Vincennes. Textos mostram a formação do autor libertino


Homérico, cínico, dantesco, kafkiano, maquiavélico. Usamos essas palavras no dia-a-dia e muitas vezes não pensamos na origem delas. O mesmo se dá com os termos sádico e sadismo, que se referem ao prazer obtido às custas da dor alheia. As duas palavras, criadas pela psicopatologia do século XIX, têm origem no aristocrata francês Donatien-Alphonse François de Sade, o Marquês de Sade (1740-1814), talvez o mais famoso escritor libertino de todos os tempos.

Autor de clássicos da permissividade, como Justine e A filosofia na alcova, Sade passou grande parte de sua vida na prisão. Ateu, materialista, blasfemador, pornógrafo, iconoclasta e visceralmente individualista, foi encarcerado pelos três regimes políticos vigentes na França entre o final do século XVIII e o começo do século XIX. Foi preso durante o Antigo Regime, a Revolução e a Restauração, sob os governos de Luís XVI, Robespierre e Bonaparte. E sempre por motivos diferentes: loucura, perversão, incitamento ao crime e, pasmem, moderação. Isso mesmo: durante o regime do Terror, o Marquês de Sade foi acusado de “excessiva moderação” ao tentar livrar o pescoço dos condenados à guilhotina.

O historiador e professor Gabriel Giannattasio, da UEL, é um especialista em Sade. Em 1999, publicou o livro Sade – Um anjo negro da modernidade, sua tese de doutorado, em que discute a vida e a obra do marquês libertino.

Acaba de ser lançado o livro Cartas de Vincennes – Um libertino na prisão (Eduel, 154 páginas). A obra reúne 16 cartas escritas por Sade na prisão entre 1777 e 1784. As correspondências foram selecionadas, traduzidas e comentadas por Giannattasio.

As 16 cartas têm três destinatárias principais: a primeira mulher do escritor, Renné; a Senhora de Montreuil, a mais terrível das sogras (a acreditarmos em Sade, responsável por seu primeiro e longo encarceramento); e a Senhorita de Rousset (uma interlocutora do marquês).

Sade era sádico? A resposta, segundo o professor Giannattasio, não é tão simples como parece. O sadismo era apenas um dos aspectos desse turbulento romântico, dono de uma visão trágica da existência. As cartas de Vincennes, em vez de decifrar o enigma Sade, aprofundam-no. Acompanhe os principais trechos da entrevista com Gabriel Giannattasio e conheça um pouco mais do marquês libertino.

Entrevista
Gabriel Giannattasio, historiador e professor

“Sade chegou a ser condenado por ‘excesso de moderação’”

JL: De que maneira as cartas de Sade ajudam a compreender a vida e a obra do autor?

Gabriel Gianattassio –Eu acho que as cartas aprofundam o mistério de Sade. De certa forma, as cartas antecipam as obras do Marquês de Sade pelas quais ele ficaria conhecido. Quando ele está escrevendo as Cartas de Vincennes, ele não é o autor dos “120 Dias de Sodoma”, “Justine”, “Juliette”, “A Filosofia na Alcova” – enfim, ele não é um literato. O único texto que ele escreve no mesmo período dessas cartas é o “Diálogo entre o Padre e o Moribundo”. Depois desse período, quando realmente nasce o escritor Sade, o romancista Sade, as cartas se tornam burocráticas, administrativas. A energia literária do autor se desloca para as obras. As “Cartas de Vincennes”, ao contrário, representam o momento de gestação do grande escritor Marquês de Sade. Essas cartas têm um interesse todo particular porque mostram o processo do auto-elaboração do autor. Eu acho que as cartas já trazem o enigma, já contêm os personagens do romance filosófico sadiano.

O que o termo “sádico” tem a ver de fato com o Marquês de Sade?

O grande público muito provavelmente não leu uma obra de Sade, mas sabe o que é sádico e o que é sadismo. O que é o sadismo? É um reflexo da obra de Sade; e eu posso situar essa reflexão da obra do autor no século XIX. É uma leitura que a psicopatologia fez da obra do Marquês de Sade, da mesma forma que leu a obra de Masoch (literato alemão). Leram a obras desses autores não com interesse literário, mas com interesse médico, clínico. Da leitura dessas obras, cunharam expressões patológicas: sadismo, masoquismo, sadomasoquismo. Sádico se tornou o sujeito que tem prazer com a dor do outro. Essa leitura se consagrou – assim como as leituras de cínico, homérico, maquiavélico. Do ponto de vista patológico, o sadismo existia antes de Sade, da mesma forma que o maquiavelismo existia antes de Maquiavel. Maquiavel não produziu a corrupção da política: ele só a denunciou. Sade não inventa o sadismo: ele denuncia uma forma de crueldade que é típica do homem. Mas nós nos habituamos a identificar Sade com o sadismo; a maioria faz isso sem ter lido a obra de Sade. Sade é um autor que oferece múltiplas perspectivas. A leitura psicopatológica não é incorreta; mas é apenas uma entre muitas outras leituras de Sade. O problema é quando essa leitura se transforma na definição de Sade. Sade não é só isso. É também isso.

Como eram as relações de Sade com o Iluminismo?

Toda análise que eu faço indica que Sade estava na contracorrente do Iluminismo. Paradoxalmente, ele era herdeiro do Iluminismo, mas, ao colocar o corpo como instância última para julgar os fenômenos, distancia-se dos outros autores iluministas. Ele perverte o Iluminismo ao se contrapor à razão. Sade busca a razão do corpo; e percebe que o corpo não tem uma só razão. Há um livro de Sade que é exemplar nesse sentido: “A filosofia na alcova”. É o pensamento submetido ao crivo do corpo. A imagem da alcova é inicialmente arquietônica: no castelo aristocrático, era o espaço que estava entre o quarto e a sala, entre o mais íntimo e o mais público da casa. Em certo momento, ele diz: “Meu corpo de manhã tem uma disposição diferente da do meu corpo à noite. Posso acordar o mais virtuoso dos homens e me deitar o mais vicioso.” Diante das necessidades corpóreas, como eu posso ter uma única razão que dê conta de tanta multiplicidade. Sade é o materialismo levado às últimas consequências. Sade não se dispõe a fazer concessões. Isso explica, em parte, a façanha de Sade: ele conseguiu ser encarcerado pelos três regimes que a França conheceu do século XVIII para o XIX: o Antigo Regime, a Revolução e a Restauração.

Como foi o comportamento de Sade durante a Revolução Francesa, especificamente durante o período do Terror? Da mesma forma como em outras dimensões, a relação de Sade com a Revolução Francesa foi paradoxal. Sade era um aristocrata de nascimento, diferentemente de boa parte da aristocracia pré-revolucionária, formada por nobres que adquiriram títulos. Só que ele é posto em liberdade pela Revolução Francesa, em 1790. Até pouco antes da revolução, ele estava preso na Bastilha. Às vésperas da Tomada da Bastilha, Sade é transferido para outra prisão. Sade acredita que perdeu o texto que ele estava escrevendo na Bastilha – em letras minúsculas, em papéis que eram enrolados e escondidos na cela. “Choro lágrimas de sangue”, diz Sade, lamentando a perda do texto. Mas o manuscrito não se perdeu: é “As 120 Jornadas de Sodoma”, que foi recuperado no começo do século XX, em um sebo da Alemanha. Com a queda do Antigo Regime, Sade é posto em liberdade e acaba assumindo certas funções públicas no período revolucionário. Com o regime do Terror, ele é colocado sob suspeição, desta vez por outro motivo. Os revolucionários começam a desconfiar da atuação pública do Sade. Eles acham que o Sade fica tentando encontrar atenuantes para livrar o pescoço dos condenados à guilhotina. E Sade diz claramente – em suas correspondências – que é radicalmente contrário à pena da morte. Ele é acusado de quê? Excesso de moderação! Mais um paradoxo. Os revolucionários prendem Sade por excesso de moderação! Ele é condenado à guilhotina e só não morre porque o regime do Terror cai pouco antes da execução da sentença. Havia uma lista de condenados: não chegou a vez dele. Da janela da prisão, ele testemunhava diariamente as execuções na guilhotina. Cai o Terror, ele é posto novamente em liberdade. A relação de Sade com os regimes políticos é sempre conflituosa e paradoxal. Na Restauração, já com Napoleão Bonaparte no poder, ele é preso por outro motivo.

Sob Napoleão, Sade é julgado pelos padrões da saúde mental – e acabará morrendo no hospício. Que ele tinha de ser preso, era ponto pacífico. A dúvida é se deveria ser preso como louco ou como criminoso.

O motivo da terceira prisão – em 1801 – é a autoria dos romances “Justine” e “Juliette”. São dois romances publicados no fim do século XVIII que contam a história de duas irmãs. Esses romances podem ser lidos de forma independente, mas há uma unidade entre eles. Os títulos são “A nova Justine ou Os infortúnios da virtude” e “Juliette ou As prosperidades do vício”. Esses livros são publicados – como era uma característica da literatura erótica e pornográfica do século XVIII – anonimamente. Vários outros escritores fizeram isso quando produziam a chamada “literatura menor”. Só que descobrem que ele é o autor desses dois romances considerados imorais na época – e por isso ele é encarcerado. Nesse momento, já há uma discussão em torno do regime de encarceramento. Até aquele momento, os criminosos e loucos ficavam presos no mesmo lugar. No fim do século XVIII e começo do século XIX, começam a separar os presos que cometeram delitos comuns e os chamados loucos. A dúvida é: onde vamos prender o Sade – no hospício ou na cadeia? Ele era um problema até na hora de prendê-lo! Há uma discussão que é relatada pelos biógrafos. O médico diz que ele tem de ficar no hospício; o diretor da prisão diz que ele tem de ficar na cadeia. Esse período do último internamento é retratado no filme “Crônicas proibidas do Marquês de Sade”. É a época em que ele começa a escrever peças de teatro e dirigir os internos em encenações.

Nessa época, Napoleão era considerado um herói. E Sade era considerado louco ou criminoso. Não é mais um paradoxo?

A existência de Sade é paradoxal.

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