quinta-feira, 17 de junho de 2010

Contos Libertinos - Marquês de Sade

Entre a cidade de Menerbe, no condado de Avinhão, e a de Apt, em Provença, há um


pequeno convento de carmelitas isolado, denominado Saint-Hilaire, assentado no cimo de

uma montanha onde até mesmo às cabras é difícil o pasto; esse pequeno sítio é

aproximadamente como a cloaca de todas as comunidades vizinhas aos carmelitas; ali, cada

uma delas relega o que a desonra, de onde não é difícil inferir quão puro deve ser o grupo de

pessoas que freqüenta essa casa. Bêbados, devassos, sodomitas, jogadores; são esses, mais

ou menos, os nobres integrantes desse grupo, reclusos que, nesse asilo escandaloso, o quanto

podem ofertam a Deus almas que o mundo rejeita. Perto dali, um ou dois castelos e o burgo

de Menerbe, o qual se acha apenas a uma légua de Saint-Hilaire - eis todo o mundo desses

bons religiosos que, malgrado sua batina e condição, estão, entretanto, longe de encontrar

abertas todas as portas de quantos estão à sua volta.

Havia muito o padre Gabriel, um dos santos desse eremitério, cobiçava certa mulher de

Menerbe, cujo marido, um rematado corno, chamava-se Rodin. A mulher dele era uma

moreninha, de vinte e oito anos, olhar leviano e nádegas roliças, a qual parecia constituir em

todos os aspectos lauto banquete para um monge. No que tange ao sr. Rodin, este era homem

bom, aumentando o seu patrimônio sem dizer nada a ninguém: havia sido negociante de

panos, magistrado, e era, pois, o que se poderia chamar um burguês honesto; contudo, não

muito seguro das virtudes de sua cara-metade, era ele sagaz o bastante para saber que o

verdadeiro modo de se opor às enormes protuberâncias que ornam a cabeça de um marido é

dar mostras de não desconfiar de os estar usando; estudara para tornar-se padre, falava latim

como Cícero, e jogava bem amiúde o jogo de damas com o padre Gabriel que, cortejador

astuto e amável, sabia que é preciso adular um pouco o marido de cuja mulher se deseja

possuir. Era um verdadeiro modelo dos filhos de Elias, esse padre Gabriel: dir-se-ia que toda

a raça humana podia tranqüilamente contar com ele para multiplicar-se; um legítimo fazedor

de filhos, espadaúdo, cintura de uma alna* , rosto perverso e trigueiro, sobrancelhas como as

de Júpiter, tendo seis pés de altura e aquilo que é a característica principal de um carmelita,

feito, conforme se diz, segundo os moldes dos mais belos jumentos da província. A que

mulher um libertino assim não haveria de agradar soberbamente? Desse modo, esse homem

se prestava de maneira extraordinária aos propósitos da sra. Rodin, que estava muito longe de

encontrar tão sublimes qualidades no bom senhor que os pais lhe haviam dado por esposo.

Conforme já dissemos, o sr. Rodin parecia fazer vistas grossas a tudo, sem ser, por isso,

menos ciumento, nada dizendo, mas ficando por ali, e fazendo isso nas diversas vezes em que

o queriam bem longe. Entretanto, a ocasião era boa. A ingênua Rodin simplesmente havia

dito a seu amante que apenas aguardava o momento para corresponder aos desejos que lhe

pareciam fortes demais para que continuasse a opor-lhes resistência, e padre Gabriel, por seu

turno, fizera com que a sra. Rodin percebesse que ele estava pronto a satisfazê-la... Além

disso, num breve momento em que Rodin fora obrigado a sair , Gabriel mostrara à sua

encantadora amante uma dessas coisas que fazem com que uma mulher se decida, por mais

que hesite... só faltava, portanto, a ocasião.

Num dia em que Rodin saiu para almoçar com seu amigo de Saint-Hilaire, com a idéia

de o convidar para uma caçada, e depois de ter esvaziado algumas garrafas de vinho de

Lanerte, Gabriel imaginou encontrar na circunstância o instante propício à realização dos

seus desejos.

* Antiga medida de comprimento de três palmos. (N. dos T.) - Oh, por Deus, senhor magistrado, - diz o monge ao amigo - como estou contente de vos

ver hoje! Não poderíeis ter vindo num momento mais oportuno do que este; ando às voltas

com um caso da maior importância, no qual haveríeis de ser a mim de serventia sem par.

- Do que se trata, padre?

- Conheceis Renoult, de nossa cidade.

- Renoult, o chapeleiro.

- Precisamente.

- E então?

- Pois bem, esse patife me deve cem écus* , e acabo de saber que ele se acha às portas da

falência; talvez agora, enquanto vos falo, ele já tenha abandonado o Condado... preciso

muitíssimo correr até lá, mas não posso fazê-lo.

- O que vos impede?

- Minha missa, por Deus! A missa que devo celebrar; antes a missa fosse para o diabo, e

os cem écus voltassem para o meu bolso.

- Não compreendo: não vos podem fazer um favor?

- Oh, na verdade sim, um favor! Somos três aqui; se não celebrarmos todos os dias três

missas, o superior, que nunca as celebra, nos denunciaria à Roma; mas existe um meio de me

ajudardes, meu caro; vede se podeis fazê-lo; só depende de vós.

- Por Deus! De bom grado! Do que se trata?

- Estou sozinho aqui com o sacristão; as duas primeiras missas foram celebradas, nossos

monges já saíram, ninguém suspeitará do ardil; os fiéis serão poucos, alguns camponeses, e

quando muito, talvez, essa senhorazinha tão devota que mora no castelo de... a meia légua

daqui; criatura angélica que, à força da austeridade, julga poder reparar todas as estroinices

do marido; creio que me dissestes que estudastes para ser padre.

- Certamente.

- Pois bem, deveis ter aprendido a rezar a missa.

- Faço-o como um arcebispo.

- Ó meu caro e bom amigo! - prossegue Gabriel lançando-se ao pescoço de Rodin - são

dez horas agora; por Deus, vesti meu hábito, esperai soar a décima primeira hora; então

celebrai a missa, suplico-vos; nosso irmão sacristão é um bom diabo, e nunca nos trairá;

àqueles que julgarem não me reconhecer, dir-lhes-emos que é um novo monge, quanto aos

outros, os deixaremos em erro; correrei ao encontro de Renoult, esse velhaco, darei cabo dele

ou recuperarei meu dinheiro, estando de volta em duas horas. O senhor me aguardará,

ordenará que grelhem os linguados, preparem os ovos e busquem o vinho; na volta,

almoçaremos, e a caça... sim, meu amigo, a caça creio que há de ser boa dessa vez: segundo

se disse, viu-se pelas redondezas um animal de chifres, por Deus! Quero que o agarremos,

ainda que tenhamos de nos defender de vinte processos do senhor da região!

- Vosso plano é bom - diz Rodin - e, para vos fazer um favor, não há, decerto, nada que

eu não faça; contudo, não haveria pecado nisso?

- Quanto a pecados, meu amigo, nada direi; haveria algum, talvez, em executar-se mal a

coisa; porém, ao fazer isso sem que se esteja investido de poderes para tanto, tudo o que

dissentes e nada são a mesma coisa. Acreditai em mim; sou casuísta, não há em tal conduta o

que se possa chamar pecado venial.

- Mas seria preciso repetir a liturgia?

- E como não? Essas palavras são virtuosas apenas em nossa boca, mas também esta é

virtuosa em nós... reparai, meu amigo, que se eu pronunciasse tais palavras deitado em cima

de vossa mulher, ainda assim eu havia de metamorfosear em deus o templo onde sacrificais...

Não, não, meu caro; só nós possuímos a virtude da transubstanciação; pronunciaríeis vinte

mil vezes as palavras, e nunca faríeis descer algo dos céus; ademais, bem amiúde conosco a

cerimônia fracassa por completo; e, aqui, é a fé que faz tudo; com um pouco de fé

transportaríamos montanhas, vós sabeis, Jesus Cristo o disse, mas quem não tem fé nada faz...

* Antiga moeda francesa. (N. dos T.) eu, por exemplo, se nas vezes em que realizo a cerimônia penso mais nas moças ou nas

mulheres da assembléia do que no diabo dessa folha de pão que revolvo em meus dedos,

acreditais que faço algo acontecer? Seria mais fácil eu crer no Alcorão que enfiar isso na

minha cabeça. Vossa missa será, portanto, quase tão boa quanto a minha; assim, meu caro,

agi sem escrúpulo, e, sobretudo, tende coragem.

- Pelos céus, - diz Rodin - é que tenho uma fome devoradora! Ainda faltam duas horas

para o almoço!


OBS.: Quem desejar a continuaçao do conto, solicite por email: clarilenemedeiros@hotmail.com

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